Na bagagem dos mais de 30 mil refugiados sírios que já cruzaram a fronteira rumo ao Líbano chegam problemas. Humanitários e, principalmente, políticos. À medida que a guerra da oposição contra o regime de Bashar al-Assad vira um duelo entre a maioria sunita da Síria e o governo minoritário alauita (uma vertente do xiismo), renascem as disputas sectárias no território libanês. No Norte do país, choques armados entre grupos sunitas e xiitas, contrários e favoráveis a Assad, já deixaram ao menos 60 mortos nos últimos meses. Na capital, governo e oposição observam a possível derrocada do regime baathista de Damasco com as atenções voltadas ao grupo xiita Hezbollah, à frente da coalizão pró-Síria no poder - que pode ser a primeira vítima externa da queda de Assad.
Num país que abriga 28 grupos étnicos e religiosos, governos tradicionalmente frágeis e a mais bem treinada milícia armada do Oriente Médio, a instabilidade regional significa perigo. E os libaneses, escaldados por uma guerra civil de 15 anos, temem que os efeitos do conflito sírio respinguem em Beirute. Sobram dúvidas sobre como - e se - o governo libanês resistirá ao pós-Assad.
O Líbano é governado por uma aliança de cristãos, drusos, sunitas e xiitas liderada pelo Hezbollah e chamada 8 de Março. O que os une é apenas a lealdade e a defesa do regime da Síria - a velha irmã, parte da mesma colônia francesa implantada na região do Levante após a queda do Império Otomano. A data, aliás, remete ao 8 de março de 2005, quando o Hezbollah convocou um megaprotesto em repúdio à Revolução dos Cedros, o movimento que levou 1 milhão de pessoas às ruas de Beirute após o assassinato do ex-premier Rafiq Hariri para exigir autonomia e o fim dos quase 30 anos de presença militar síria no Líbano.
O Exército sírio saiu, mas a influência política de Damasco sobre Beirute não. Sempre foi motivo de desavenças entre facções libanesas. O sírio Partido Baath tem até uma representação no Líbano, com dois deputados no atual Parlamento. E essa influência cresceu com o fortalecimento político, em 2008, do Hezbollah - que depende de sua parceria estreita com a Síria para receber armas e recursos de seu patrono, o xiita Irã.
Nos bastidores, disputa é entre Irã e Arábia Saudita
Logo após o atentado que na semana passada matou quatro altos integrantes do círculo de segurança de Assad, o líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, emitiu um sinal público de preocupação. Correu à TV para prestar apoio ao amigo. E admitir que a Síria é um “corredor” e um “aliado crucial”. Os próximos passos de Nasrallah diante da crise síria serão decisivos para a estabilidade libanesa. Principalmente quando o grupo tem nas mãos um enorme arsenal de armas e mísseis, além de milhares de guerrilheiros — capazes de entrar em ação tanto num cenário de ameaça externa quanto interna, como em 2008, quando o grupo tomou as ruas de Beirute em protesto contra medidas do governo (sunita) da época.
- O Hezbollah vive uma situação muito delicada na qual terá que se reinventar, já que a queda do regime de Assad certamente vai dar lugar a um governo sunita, contrariando os interesses do grupo xiita — observou o pesquisador libanês Tony Badran, da Fundação para a Defesa das Democracias, em Washington.
Para Badran, a queda de Assad não vai provocar o colapso político do Líbano, mas forçar mudanças. Uma delas pode ser o enfraquecimento ou mesmo a implosão total da aliança 8 de Março, na qual a proximidade com os sírios é tão grande que muitos de seus membros não hesitam em defender abertamente a Grande Síria da era otomana, quando o Líbano era parte integral da Síria.
- Não acho que haverá uma guerra, pois todas as forças políticas, independentemente da religião, querem impedir o vácuo político, que é arriscado. Mas todos estão em compasso de espera. A política libanesa gira em torno de dois pontos nos últimos anos: a contestada influência da Síria e as armas do Hezbollah. Se Assad cair, a questão síria sai momentaneamente da pauta. Então, o arsenal do Hezbollah passará a dominar o debate político, acentuando as diferenças de posição entre xiitas e sunitas - avaliou.
A disputa de influência entre as duas principais vertentes do Islã, aliás, ganha espaço. Em Trípoli, cidade majoritariamente sunita - chocada pelo massacre de sunitas no país vizinho - há confrontos esporádicos armados com xiitas, vistos como os autores da matança na Síria. Oportunista, um xeque sunita e salafista, até então desconhecido, Ahmad al-Assir, montou até um acampamento de cerca de 150 homens para protestar contra o que considera “o domínio xiita na região” e, principalmente, contra o Hezbollah. E já começa a ganhar apoio, num desafio inédito ao bloco do até então ultrapopular Nasrallah.
O momento libanês fica mais delicado diante do enfraquecimento da oposição, a coligação 14 de Março, liderada pelo sunita Mustaqbal (Futuro), do ex-premier Saad Hariri. A queda de Assad e o impacto sobre os rivais do bloco governista seriam a chance de fortalecer os sunitas - cujo patrono ideológico é a Arábia Saudita.
- Seria a grande oportunidade de reconstrução do Líbano. Porém, o 14 de Março, uma constelação de grupos unidos contra o regime sírio e a política de dominação do Hezbollah, terá que ficar unido - opinou o ombudsman da coligação, Carlos Eddé.
De longe, Teerã apoia as manobras do bloco governista. Já para a oposição sunita, é Riad que entraria em cena para unificar o 14 de Março. Analistas acreditam que o rei Abdullah II, decepcionado com o fraco desempenho de Hariri frente à união política Hezbollah-Irã, estaria buscando novas lideranças alternativas.
- O ex-premier Fuad Siniora está em ascensão. Quando primeiro-ministro, resistiu bem às pressões do Hezbollah e jamais se deixou envolver em conversas com a Síria - sinalizou uma fonte consultada pelo GLOBO em Beirute. De http://oglobo.globo.com/
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