Foto: Reprodução / Youtube
A população brasileira rejeita de forma inquestionável o argumento do presidente Jair Bolsonaro de que é preciso armar as pessoas para que não sejam escravizadas por governantes.
De acordo com pesquisa Datafolha, 72% dos entrevistados discordam do que disse Bolsonaro em reunião ministerial do dia 22 de abril, cuja gravação em vídeo foi divulgada por ordem do ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal.
“Eu quero todo mundo armado. Que povo armado jamais será escravizado”, afirmou o presidente na ocasião.
Apenas 24% dos pesquisados estão de acordo com a declaração, enquanto 2% não concordam nem discordam e outros 2% não souberam responder, segundo a Folha de São Paulo.
A margem de erro da pesquisa, feita com 2.069 entrevistados nos dias 25 e 26 de maio, é de dois pontos percentuais para mais ou para menos.
A defesa feita por Bolsonaro de armar a população ocorreu num contexto de críticas ao que o presidente definiu como medidas autoritárias de governadores e prefeitos para obrigar a população a manter o isolamento social durante a crise de saúde.
O presidente chamou o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), de “bosta”, e o do Rio, Wilson Witzel (PSC), de “estrume”, além de ter ofendido outras autoridades. A tese exposta por Bolsonaro é de que facilitar o armamento seria uma espécie de garantia de que a população poderá resistir a medidas impostas por esses governantes, seus adversários políticos.
“Por isso que eu quero, ministro da Justiça e ministro da Defesa, que o povo se arme. Que é a garantia que não vai ter um filho da puta aparecer pra impor uma ditadura aqui”, defendeu o presidente na reunião, dirigindo-se, respectivamente, a Sergio Moro (que já deixou o cargo) e ao general Fernando Azevedo e Silva.
Esse tipo de argumento pró-armas não é dos mais comuns, o que aumentou a estranheza generalizada com a frase de Bolsonaro. Em geral, costuma-se defender o armamento com base em duas razões principais, que são a garantia de defesa do cidadão contra criminosos e o respeito a um direito individual.
Propagar a resistência contra uma suposta ameaça de tirania do Estado é uma justificativa importada dos EUA, onde esse aspecto está na base da Segunda Emenda à Constituição, que adquiriu caráter mítico para os armamentistas.
Aprovada em 1791, a emenda diz que milícias têm direito de ter e portar armas para garantir a segurança de um Estado livre. Na época, a nascente democracia americana ainda não havia se consolidado, e o medo de um retrocesso autoritário era concreto.
Embora as circunstâncias tenham mudado muito desde então, o conceito permanece, sendo repetido à exaustão por armamentistas americanos e brasileiros. O Datafolha mostra que o argumento de Bolsonaro encontra respaldo ainda menor entre as mulheres.
Neste grupo, a rejeição à frase chega a 80%, enquanto apenas 16% fazem coro ao presidente. Entre os homens, a discordância cai para 62%, e a concordância chega a 34%. A reprovação também é mais acentuada nos estratos econômicos mais baixos da população.
Entre os que declaram ter renda familiar mensal de até dois salários mínimos, 77% rejeitam armar a população contra hipotéticos regimes escravizantes e 19% aceitam o argumento.
A rejeição cai progressivamente conforme aumenta a renda. Na parcela mais abastada, que ganha mais de dez salários mínimos mensais, 60% discordam de Bolsonaro e 38% concordam com ele. Também é possível identificar maior apoio à frase em segmentos nos quais o presidente historicamente tem imagem mais positiva.
No Sul, que foi um bastião de bolsonarismo na eleição de 2018, 66% discordam da frase, enquanto 27% a apoiam. É a região em que o argumento do presidente tem mais ressonância.
Entre os que se declaram empresários, parcela em que o presidente conserva um contingente expressivo de apoiadores, chega a haver um empate técnico entre as duas posições, com 50% discordando contra 46% de acordo com a frase.
Em contraste, 78% dos desempregados discordam, e 20% concordam com a afirmativa. Desde que assumiu o governo, Bolsonaro busca flexibilizar o porte e a posse de armas de fogo, mas muitas de suas iniciativas enfrentaram resistência, inclusive no Congresso e no Supremo Tribunal Federal.
Uma delas foi a tentativa de ampliar por meio de decreto as categorias que poderiam ter armas, para incluir caminhoneiros, advogados e jornalistas, entre outras. O presidente foi obrigado a recuar. Mas Bolsonaro conseguiu implementar facilidades pontuais para o setor, como o aumento da quantidade de munição e novos tipos de armas que podem ser adquiridos.
Também houve algumas regalias para os chamados CACs, categoria especial que inclui colecionadores de armas, atiradores e caçadores. Eles passaram a ter prazo maior de validade de seus registros e a permissão para andar com a arma carregada em deslocamentos.
Proprietário de um clube de tiro em São Bernardo do Campo (SP), Rogério Giroto, 50, diz que concorda com a tese de armar a população como instrumento de defesa contra possíveis abusos do Estado, exposta por Bolsonaro. Mas, diz ele, desde que os interessados em terem armas cumpram os mesmos requisitos que são exigidos dos CACs.
“Concordo em armar a população desde que todos tenham o mesmo preparo. A pessoa precisa provar capacidade psicológica e técnica para portar uma arma. Tem que ser exigido um curso preparatório”, afirma ele, que é atirador há 30 anos.
Proprietário de uma coleção de pistolas de calibres 9 milímetros, 380 e 12 milímetros, Giroto afirma que a procura por seu curso de tiro aumentou bastante nos últimos anos.
“A população tem hoje uma visão melhor sobre o que é ter uma arma. Abriram centenas de clubes de tiros com essa flexibilização que o Bolsonaro deu. A demanda é muito grande”, afirma ele, cujo clube tem cerca de 630 associados.
Giroto defende novas medidas, que envolveriam a facilitação de registro de arma e de permissão de uso, um processo ainda muito lento e burocrático, segundo ele. Também diz que a idade mínima para ter uma arma deveria ser reduzida de 25 para 21 anos. A aprovação à ampliação de possibilidades para o acesso a armas é maior, como seria de se esperar, para pessoas que seguem apoiando o presidente.
Segundo o Datafolha, 54% dos que avaliam o governo como ótimo ou bom concordam com a frase do presidente, contra 40% que discordam. Entre os que veem a gestão como ruim ou péssima, 92% se posicionam de forma contrária a armar a população para resistir a regimes autoritários, contra 6% que estão de acordo.
Por outro lado, a frase é rejeitada mesmo entre os entrevistados que declararam ter votado em Bolsonaro no segundo turno em 2018, ainda que com margem menor com relação ao total da população. São 43% os que concordam, contra 52% que discordam.
Nenhum comentário:
Postar um comentário