“Se eu disser para vocês que o inferno existe, acreditem, pois eu estava mergulhada nele, de corpo e alma, num espaço sombrio e frio, bem interno do ser, dos pés à cabeça, sem tempo, sem luz, nem descanso e afogava-me, a cada segundo, num oceano de matéria viscosa que roubava até minha ilusória alegria”. Assim começa uma carta que está circulando na internet e que seria uma psicografia da cantora Cássia Eller, morta no dia 29 de dezembro de 2001, aos 39 anos, após sofrer quatro paradas cardíacas.
Show de Cássia Eller no Circo Voador. Foto: Júlio César Guimarães
O Lar de Frei Luiz, renomado centro espírita localizado no bairro de Jacarepaguá, na Zona Oeste do Rio, confirmou que, de fato, a carta foi psicografada no local. Segundo o presidente, Wilson Pinto, a mensagem foi recebida por um médium na noite de 7 de maio, durante uma reunião de dependência química.
- Não é a primeira desse tipo que recebemos. Já recebemos do Chorão, do Cazuza... é verdadeira. O que não é de nosso costume é a divulgação dessas psicografias, é um assunto interno da casa, não deveria ter vazado - ressaltou o presidente, acrescentando que não chegaram a avisar para a família da cantora sobre a carta, procedimento padrão no centro espírita.
Suposto espírito relata período no “umbral”
Na mensagem, o suposto espírito de Cássia relata o período em que passou no “umbral”, espécie de purgatório para a doutrina espírita. O termo ficou bastante conhecido após o filme “Nosso Lar”, baseado na obra homônima escrita através de psicografia pelo médium Chico Xavier. “Perguntava-me porque ali estava se nada fizera por merecer tão infeliz destino, depois de ser expulsa do corpo de carne através do uso maciço de drogas. A dúvida assaltava-me os raros momentos de raciocínio menos desequilibrado e as crises de abstinência trancavam todas as portas que dariam acesso à saída daquele campo de penitência de espíritos rebeldes e viciados como eu”, diz um trecho.
Depois de alguns anos no “umbral”, conforme descrito na carta, o espírito da cantora teria encontrado a paz. “Despertei numa tarde serena, num campo verdejante e calmo. Não acreditava no que via, pois tudo, agora, parecia um sonho… Percebi, ao longe, o canto de uma ave que insistia em acordar-me daquele pesadelo no qual já me acostumava a viver”, relata a mensagem. Nesse local de calmaria, Cássia teria encontrado Cazuza, a quem se refere como “ídolo”, que teria cantado uma canção para a amiga.
A cantora se apresenta no Rock in Rio 3. Foto: Alaor Filho
No fim da psicografia, o suposto espírito de Cássia diz que foi reconduzido para um “hospital”, onde se recupera de “traumas e cicatrizes” que criou: “as lesões que provoquei foram muito graves, passei por várias cirurgias espirituais e soube que minha próxima encarnação será dolorosa e expiarei asma, deficiência mental e tuberculose. Mesmo assim, estou reunindo forças para estudar, pois sempre guardamos, no inconsciente, todos os aprendizados conquistados”. Além disso, afirma que reencarnará em uma “comunidade carente no interior do Brasil” e que passará “por muitos revezes”, para despertar nela “o valor da vida do espírito na pobreza e na doença crônica”.
Carta divide opiniões entre espíritas
Segundo o diretor de marketing da Federação Espírita Brasileira, João Rabelo, não é possível ter certeza se a mensagem foi, de fato, transmitida pela cantora.
- Como dizia Chico Xavier, “o telefone toca de lá para cá”. O espírito que toma a iniciativa de mandar a mensagem, o médium funciona como um correio. Não dá para saber se o espírito está se passando por outro - explica, destacando que médiuns mais experientes, como Chico Xavier, têm mais facilidade de identificar os espíritos.
Rabelo explica que todas as cartas psicografadas passam por uma triagem, feita por um dirigente durante reunião mediúnica. Segundo ele, caso seja percebido que ela é de grande importância, a carta é enviada para a direção do centro espírita, que divulgará se achar conveniente. Para Rabelo, o cárater, a seriedade e a pureza do trabalho do médium são determinantes durante a avaliação. Além disso, segundo ele, a mensagem deve estar dentro dos padrões da codificação espírita, baseada no evangelho de Jesus.
O presidente da Rádio Rio de Janeiro, de conteúdo espírita, Gerson Monteiro, por sua vez, defende que é possível identificar a veracidade de uma mensagem psicografada através da análise da linguagem e da assinatura do espírito. Mas que, no caso da Cássia Eller, é mais difícil saber, pois “ela não era escritora e não tinha um estilo próprio de escrever”. Além disso, Monteiro diz que a linguagem do espírito pode determinar se ele é superior, inferior ou mediano, ou seja, se tem ou não uma elevação espiritual.
Monteiro destaca que é comum chegarem mensagens apócrifas, ou seja, que não é do autor a que se atribui. Segundo ele, o conhecimento da doutrina espírita pelo médium lhe dará grande segurança, o que não impede que ele fique sujeito a equívocos.
“A Cássia era o Cazuza de saias”
Em um dos trechos, a mensagem cita Cazuza, grande amigo de Cássia morto em 1990, aos 32 anos. “Alguém me tocava, de leve, os ombros e chamava-me pelo nome, como se me conhecesse há muito tempo. Eu identifiquei aquela voz e “temia” olhar para trás e confirmar minha impressão auditiva, era Cazuza todo de branco, como lindo enfermeiro, de cabelos cortados bem curtos e estendia suas mãos para que eu levantasse, caminhasse e conversasse um pouco em sua companhia”, diz o trecho.
Apesar de ter achado o trecho da carta “muito bonito”, Lucinha Araújo, mãe de Cazuza, diz que não acredita em psicografia. Segundo ela, desde que Cazuza morreu, há 25 anos, já recebeu uma enxurrada de cartas atribuídas a ele, mas, em nenhuma delas, o reconheceu.
- A Cássia e o Cazuza se gostavam muito. Falava muito com a Cássia porque ela gravou dois discos só com músicas do Cazuza e eu dei palpites. Ela era uma gracinha, gostava muito dela. E sempre me disse que era louca por ele. A Cássia era o Cazuza de saias - lembra Lucinha.
O EXTRA entrou em contato com a ex-companheira de Cássia Eller, Maria Eugênia Martins, que não quis comentar o assunto por se tratar de "uma questão muito pessoal”.
Leia a suposta carta na íntegra:
"Se eu disser para vocês que o inferno existe, acreditem, pois eu estava mergulhada nele, de corpo e alma, num espaço sombrio e frio, bem interno do ser, dos pés à cabeça, sem tempo, sem luz, nem descanso e afogava-me, a cada segundo, num oceano de matéria viscosa que roubava até minha ilusória alegria… Naquele lugar não havia luz, somente nuvens cinza e chuvas com raios e trovões, gritos estridentes e desesperados, gemidos surdos, pedidos de socorro, lágrimas, desalento, tristeza e revolta…