Evento da Conifa reúne 16 países ou territórios não reconhecidos pela ONU ou pela Fifa
Por Helena Rebello, Alexandre Lozetti e Edgard Maciel de Sá, Londres, Inglaterra / https://globoesporte.globo.com
Torcedores de Abecásia e Tibete com o ingresso do jogo de estreia das equipes na Copa da Conifa (Foto: Helena Rebello)
É meio dia de uma quinta-feira, hora de estreia na Copa do Mundo. Torcedores apaixonados agitam bandeiras e gritam a plenos pulmões. Mas se perguntados sobre o nome de um jogador sequer em campo, não sabem dizer. Tampouco importa. No Mundial da Conifa, a Confederação de Associações Independentes de Futebol, o esporte é apenas o pano de fundo de uma luta muito mais ampla por representatividade.
Se durante os 90 minutos Tibete e Abecásia correram atrás da bola, a apenas três quilômetros de onde a seleção brasileira treina para a Copa da Fifa, essas duas nações enfrentam há décadas batalhas muito mais árduas no campo geopolítico.
A competição, disputada até o dia 9 de junho em dez sedes na região metropolitana de Londres, reúne 16 países ou territórios não reconhecidos pela ONU ou pela Fifa. Como as comunidades desses expatriados são pequenas no Reino Unido, as partidas tornaram-se a oportunidade perfeita para celebrar a cultura longe de casa.
Mas o jogo em si virou mero detalhe. No Estádio Elizabeth II, em Enfield, o gramado nem de longe lembra os tapetes vistos na Premier League. Não havia gandulas, e a súmula tinha os nomes dos jogadores escritos à caneta. A vista das arquibancadas para o campo era limitada pelos bancos de reserva, quase no mesmo nível. Em vez de assistir integralmente aos lances, as opções eram comer, cantar e dançar.
- Claro que gostaríamos que os torcedores nos conhecessem melhor, mas de qualquer forma agradecemos muito o apoio que nos deram aqui. Todos estamos muito longe de casa e esse é um torneio muito grande para o nosso país, que é muito pequeno. Ninguém nos conhece, mas nosso país gosta muito de futebol. Esperamos que um dia nós possamos disputar a Copa da Fifa - disse o meio campo Aleksandr Kogoniia, da Abecásia.
O país é o atual campeão do torneio, tendo vencido em casa em 2016 - um salto considerável para quem foi oitavo na primeira edição do evento, dois anos antes. No elenco atual, todos os jogadores são vinculados a algum clube - ou da primeira divisão abecásia ou da terceira ou quarta divisões da Rússia. Situação bem melhor do que a do adversário Tibete, em que nenhum dos 23 inscritos é profissionalizado.
- A maior parte do time mora na Índia, onde temos nossa maior comunidade. Então viemos torcer por eles para dar energia e alegria. Sabemos que é difícil vencer, mas é importante que eles joguem para que os jornais falem do Tibete. O futebol é muito popular, esporte grande, e com eles jogando as pessoas vão nos conhecer melhor. Muitos não sabem a nossa história ou situação política - disse T Sangpo, assistente de vendas que vive há dez anos em Londres.
Passaportes russos e chineses, a contragosto
Jogadores da Abecásia cumprimentam torcedores após a partida (Foto: Divulgação / Conifa)
A Abecásia é um estado independente da costa leste do Mar Negro, na região do Cáucaso, e se declarou independente da Geórgia após a guerra civil de 1992/93. Tem cerca de 300 mil habitantes e tem como principal atividade econômica o turismo, graças aos rios e montanhas que compõem belas paisagens. As tensões políticas, no entanto, geraram migrações em massa. Estima-se que o número de abecasianos ao redor do mundo seja maior do que os que vivem na terra natal.
Para a população, o grande problema é a falta de reconhecimento da comunidade internacional. Em 2008 a Rússia aceitou a soberania do território, mas até hoje apenas Nicarágua, Venezuela e outras nações também não integrantes do quadro da ONU demonstraram apoio neste sentido. Assim, para viajar ao exterior, os abecasianos dependem da emissão de passaportes russos.
No caso do Tibete, a situação é ainda pior, já que a emissão de passaportes é subordinada à China, país que se considera soberano do território tibetano. Localizado a noroeste da cordilheira do Himalaia, o Tibete tem o governo de exílio na cidade de Dharamsala, na Índia. Sam Wylde, representante da ONG "Free Tibet", afirma que a falta de conhecimento sobre o país é a principal ferramenta de opressão.
- Há muitos países aqui cujos torcedores são refugiados, em países que não são reconhecidos não só pela Fifa, mas pela ONU. Esperamos que as pessoas sabendo do Tibete saibam também da ocupação chinesa. Recentemente fizemos uma pesquisa para saber quantas pessoas no Reino Unido sabiam da situação do Tibete, e quase ninguém sabe sequer onde ficava. Quem tinha ouvido falar citava o Dalai Lama. O controle de informação esconde muito, mas esperamos que o futebol ajude a tornar o país mais conhecido e essa situação mais transparente.
Nenhum dos 23 convocados do Tibete tem vínculo com clube profissional (Foto: Divulgação / Conifa)
O britânico Darren Harris foi a Enfield nesta quinta unicamente pelo futebol. Acostumado a torcer pelo time local, que está no equivalente à sétima divisão da Inglaterra, o autônomo levou o filho adolescente para acompanhar o jogo. Ele considera interessante a iniciativa da Conifa e definiu sua torcida de forma simples.
- É importante trazer pessoas de diferentes comunidades juntas através do esporte, pessoas que normalmente não se encontrariam no dia a dia. Talvez eu torça pelo Tibete, que é mais fácil de pronunciar.
Vizinhos do Brasil em dose dupla
O Estádio Rainha Elizabeth, sede do Mundial da Conifa, fica a cerca de 20 minutos do Centro de Treinamento do Tottenham, onde a seleção brasileira se prepara para a Copa do Mundo da Fifa. O curioso é que a base do Brasil na Rússia será a cidade de Sochi, a cerca de 40km da fronteira da Abecásia. Uma proximidade geográfica que estreita os laços entre as comunidades.
Jogadores da Abecásia celebram um dos três gols na vitória sobre o Tibete (Foto: Divulgação / Conifa)
- Sinceramente não conheço nenhum jogador da Abecásia pelo nome. Mas sei dos brasileiros. Conheço os dois Ronaldos, muitos jogadores brasileiros. Mas não é um problema, sinceramente. Sei que os abecasianos vão apoiar o Brasil. Quando se fala em futebol todo mundo sabe que o Brasil é o melhor, onde os jogadores são mais habilidosos, você assiste e gosta de ver. Quantas vezes vocês foram campeões? Cinco? Vocês têm os melhores jogadores, por isso torcemos. Quando o Brasil joga, todo mundo gosta. Vocês vão ser campeões de novo, estou torcendo - disse Serdar Agirbay, de 55 anos.
Enquanto a equipe de Tite não entra em campo na Rússia, os abecasianos podem canalizar as boas energias para sua própria seleção. O time começou bem contra o Tibete. Lembra do jogo? Aquele, ao meio dia de uma quinta-feira... O placar foi 3 a 0.