por Lula Bonfim / BN
Colégio Municipal Dr. João Paim, em São Sebastião do Passé | Foto: Divulgação
Uma adolescente de idade foi impedida, na última segunda-feira (21) de entrar no Colégio Municipal Dr. João Paim, em São Sebastião do Passé, na Região Metropolitana de Salvador, por ter um cabelo “não adequado às regras” da escola, que integra o sistema de ensino da rede CPM (Colégio da Polícia Militar).
Eloah Monique, de 13 anos de idade, é negra e tem um cabelo crespo, montado no estilo “black power”. Entretanto, sabendo das regras do colégio em que está matriculada, ela mantinha a rotina de, diariamente, prender o cabelo e arrumá-lo em um “coque” para frequentar as aulas.
Mesmo assim, isso não a impediu de ser barrada na entrada do colégio. De acordo com a mãe da garota, Jaciara Tavares, um instrutor da escola não permitiu a entrada de Eloah, alegando que seu cabelo “inchado” não se adequava às normas militares da instituição.
“Na segunda, ela foi para a escola. Estava com o cabelo preso. Mas o instrutor disse que o cabelo dela estava inchado. Ele faz essa abordagem na frente da escola. Disse que o cabelo dela estava inadequado para as regras da escola e que não poderia adentrar à unidade escolar naquele dia”, relatou Jaciara, em entrevista ao Bahia Notícias.
Ainda segundo ela, Eloah já tinha passado por essa situação outras duas vezes. Na terceira vez, a adolescente não aguentou e voltou para casa, pedindo à mãe para mudá-la de colégio.
“O instrutor falou isso na frente de várias outras pessoas, entre pais e alunos, constrangendo ela. Mandou ela embora para casa. Não me comunicaram, não me ligaram. A escola não se responsabilizou em momento nenhum por ela nem pelo ato. Minha filha foi para casa sozinha, podendo ser roubada, estuprada. Ela chegou em casa com muita raiva. Mandou três áudios para mim, disse que se sentia humilhada no colégio e pediu para que eu a matriculasse em outra instituição”, contou a mãe.
Jaciara então foi ao colégio, em busca do instrutor. Mas a reação do funcionário não mudou: ele insistiu que o cabelo da menina era inadequado e afirmou que apenas cumpria as regras da instituição.
“Me mostrou uma cartilha das regras e apontou o modelo de cabelo que ela deveria utilizar. Só que o cabelo dela é assim, é black, é normal que ela tivesse dificuldades de deixar o cabelo como estava no papel. Ele respondeu que minha filha deveria alinhar ou até alisar o cabelo. Quer dizer: para minha filha estudar, ela vai ter que abrir mão da identidade dela?”, questionou.
Procurado pelo Bahia Notícias, o advogado da família no caso, Marcos Alan da Hora, avaliou que o caso se trata tanto de racismo quanto de injúria racial. Segundo ele, Jaciara registrou queixa na Delegacia de São Sebastião do Passé, que está investigando o fato.
“No âmbito penal, pela proporção que isso tomou, o Ministério Público já deve ter tomado ciência e tem a obrigação de apurar a situação, instaurando de ofício um inquérito próprio. Mesmo que isso não aconteça, como a mãe registrou uma queixa na delegacia, após o término da apuração da Polícia, o delegado deverá encaminhar o processo ao Ministério Público logo que se chegar ao fato e à autoria. Aí o Ministério Público precisa instaurar a denúncia, um processo jurídico para responsabilização do autor do fato”, apontou Alan da Hora.
Para o advogado, como a conduta de não permitir o cabelo de garota é regulamentada pelo colégio, a instituição também precisa ser responsabilizada pelo caso de racismo.
“Você exigir um padrão estético em que a maioria da população brasileira não se enquadra, isso, por si só, já seria racismo. Isso precisa ser repensado pelas autoridades públicos, para que se adequem às normas de direitos iguais, relacionados às características de cada povo, de cada pessoa. Estamos falando de um caso sobre negros, de cabelo crespo, mas isso que estou dizendo pode se encaixar a qualquer raça ou etnia. É preciso respeitar as diferenças”, disse o defensor.
“Qual é a diferença que existe entre cabelos? Por qual motivo, para uma característica, nada é imposto e, para outra, se impõe sacrifícios? Não é porque uma norma existe, que ela tem que ser seguida. Especialmente se ela for claramente racista, como é o caso”, criticou.
Alan da Hora ainda sinalizou a possibilidade da família acionar tanto o colégio quanto o funcionário na área cível, por danos morais. Segundo ele, há um claro constrangimento imposto não só a Eloah, como também a Jaciara como mãe da adolescente.
Jaciara, entretanto, diz que só quer impedir que sua filha e outras pessoas negras voltem a passar por situações como essas.
“É revoltante. Cada vez que eu conto a história, eu fico mais triste. Este país é muito racista. Eu ainda quis amenizar, quis denunciar por injúria racial. Mas, na verdade, o instrutor foi racista com minha filha. Essa é a verdade. O crime é de racismo. Aqui, em São Sebastião, 95% é de pessoas negras. E nós não podemos mais conviver com isso”, finalizou a mãe.
POSICIONAMENTO DA PM-BA
Em nota encaminhada ao BN, a Polícia Militar da Bahia (PM-BA) afirmou que o Colégio Municipal Dr. João Paim não é uma instituição de ensino da corporação e disse repudiar qualquer tipo de comportamento racista ou discriminatório.
“A Prefeitura de São Sebastião do Passé assinou um Termo de Cooperação Técnica (TCT) com a PM-BA para difundir o Sistema de Ensino da rede CPM. Com a implantação desse Sistema, o colégio passou a ter uma direção compartilhada entre o diretor escolar, encarregado das questões administrativas e pedagógicas, e o diretor disciplinar, que é um policial militar da reserva que se responsabiliza pela parte disciplinar dos alunos”, diz a nota.
A PM-BA também relatou que o comandante do 5° Pelotão da 10ª CIPM, unidade responsável pelo policiamento em São Sebastião do Passé, manteve contato com a mãe da aluna e se colocou à disposição. Juciara foi até a sede do pelotão na última terça-feira (22), onde foi ouvida.
O historiador Marcos Resende, representante do Coletivo de Entidades Negras, questiona as regras impostas pela PM-BA nos colégios que foram assumidos pelo sistema de ensino da rede CPM. Segundo ele, a vedação a cabelos dos mais variados tipos é um sinal de atraso da instituição.
“Na Polícia de Nova Iorque, o policial pode ser rasta, pode ter dread. Se for muçulmano ou indiano, ele usa os aparatos da religião dele na cabeça e segue sendo policial. Então, que tipo de instituição nós temos aqui na Bahia, que é a Polícia Militar, que insiste em não mudar de forma nenhuma? Implantar isso nas escolas e tratar isso como algo a ser normatizado, nesta conjuntura e nesta quadra histórica é tipo nós voltarmos para a idade média”, criticou Resende.