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quarta-feira, 27 de agosto de 2014

'Na Coreia do Norte, os rádios só têm botão de ligar e desligar'

Jose Luis Peixoto - Foto: Marcelo Piu / Agência O Globo

José Luis Peixoto, premiado escritor português de 40 anos, deixou um pouco a literatura de lado e se dedicou à crônica jornalista. O resultado é "Dentro do Segredo", um relato feito por Peixoto após passar três semanas na Coreia do Norte que está sendo lançado no Brasil. "A partir de 2000, passei a viver exclusivamente dos meus livros e a colaborar com jornais portugueses por meio de crônicas. E por causa das obras viajava muito. Um dia, quando estava em Korean Town, em Los Angeles, pensei em escrever sobre algo muito diferente da minha realidade e que não fosse literário. O próprio lugar me deu a resposta e decidi ir para a Coreia do Norte, que era o mais diferente que eu conseguia imaginar", disse ele ao titular do blog em entrevista na sede do GLOBO. Abaixo, o escritor revela detalhes sobre o país asiático, um dos mais fechados do mundo. Entre eles, o fato de os rádios vendidos aos norte-coreanos só terem botão de ligar e desligar. 

Conte algo que não sei. 

"A Coreia do Norte é um país de histórias incríveis. Uma das que me contaram na minha primeira viagem falava sobre a inauguração do primeiro e único campo de golfe norte-coreano. De acordo com a agência nacional de informação, quem deu as primeiras tacadas foi o líder Kim jong-Il. E, oficialmente, consta que ele acertou todos os buracos com uma só tacada em cada um deles. Ele nunca tinha jogado golfe. No fim, o líder disse que não voltaria a jogar porque era muito fácil. O feito foi testemunhado apenas por seguranças e generais, o que faz parte da mitologia do regime. Mas se tornou indiscutível. A marca deveria estar no livro Guinness, mas, obviamente, não está."

Você considera um anacronismo existir ainda uma Coreia do Norte em pleno século XXI? 

"Esta é a característica mais marcante do país. Uma sociedade como aquela é única no mundo. Evidentemente já existiram muitas ditaduras na História, mas como esse nível de sofisticação no que diz ao controle dos seus cidadãos em todos os momentos da sua vida, não creio que já tenha existido. E esse controle é exercido por meio da restrita informação e da ausência de informação. Nós vivemos em uma sociedade de informação, o que faz a Coreia do Norte parecer um país fora do mundo." 

Muitas notícias sobre a Coreia do Norte chegam ao Ocidente sem comprovação. Com a sua experiência foi possível separar o que é mentira e o que é verdade? 

Na Coreia do Norte, toda a informação é propaganda do regime. Conversando com as pessoas e lendo o que é possível, vemos que aqueles fenômenos, como os choros coletivos e outras manifestações sociais de massa, dependem muito das informações que eles recebem. O país se esconde muito, forja muitas informações e acaba facilmente apanhado em contradição. Não é fácil fazer uma avaliação e tirar uma conclusão do que é verdade e do que é mentira, sobre o que é verdadeiramente a realidade. Visitar o país não é suficiente para tirar todas as conclusões. A única coisa que parece seguro afirmar é que a Coreia do Norte é uma ditadura muito severa, em que a população vive uma situação que, para nós, é impensável. Os norte-coreanos não podem circular livremente pelo país e não podem escolher a maior parte das coisas que formam a sua vida. Tentei fazer um exercício de não especular. É claro que às vezes para completar o quebra-cabeça é preciso imaginar algumas pontes. 

Mas você sentiu que os choros coletivos são genuínos? 

Não é fácil dizer se são verdadeiros. Tentar entender a Coreia do Norte e os norte-coreanos é um exercício muito difícil. Ao longo de séculos, o país desenvolveu uma cultura que se afastou muito da nossa. Tenho dificuldade de saber se os choros são sentidos ou não porque é muito complicado se colocar no lugar de uma pessoa que nasceu com aquela cultura, com os pais defendendo aquele regime de ídolos e líderes sobreumanos. Mas não se trata de uma população de robôs. Visitando o país, pude ver que, naquilo que é essencial, são seres humanos, apesar das enormes manifestações de massa sincronizadas e, ao nosso olhar, parecerem uniformes e quase semelhantes entre si. Apesar de viverem com regras em alguns sentidos muito severas e marciais, afinal o país é o quarto no mundo em número de efetivos militares, há momentos em que as pessoas aliviam e se soltam. 

Que momentos são esses? 

Na Coreia do Norte, o núcleo familiar é muito importante na formação da sociedade. Os momentos familiares são onde isso acontece. As famílias costumam passear nas montanhas, ondem dançam e cantam. Mas, é claro, a manifestação da individualidade é uma das coisas mais opressivas no país. E ela é muito rara. Eles ganham a liberdade pelo soju, que é uma bebida tradicional por lá e que os deixa mais relaxados nas montanhas.

A foto manipulada por norte-coreanos - AFP
A imagem original - Foto: Reuters

Ano passado, circulou uma imagem manipulada com Photoshop mostrando um enorme aparato militar norte-coreano em uma praia. Qual foi a sua impressão da força militar do país? 

A primeira das duas visitas que fiz, em 2012, coincidiu com os 100 anos do nascimento (15 de abril de 1912) de Kim Il-Sung, o principal líder histórico do país. É partir do nascimento dele que é contado o calendário usado na Coreia do Norte. Então assisti a um desfile militar em Pyongyang, quando pela primeira vez foram exibidos mísseis do país. Até para quem não é especialista bélico, pareceu evidente que se tratava de material muito ultrapassado. Depois da passagem do aparato, o ar ficava praticamente irrespirável por causa da fumaça dos veículos muitos antigos, de décadas e décadas atrás, queimando óleo. Eu duvido da maior parte das ameaças feitas pelos líderes norte-coreanos. Elas são parte de um discurso que é dirigido à comunidade internacional que dá alguma margem de negociação, mas sobretudo, é um discurso que se dirige ao consumo interno. 

Pelo seu relato, a Coreia do Norte se aproxima muito do país fictício de Orwell em "1984", não? 

Sim. Não há um momento em que as pessoas minimamente mostrem algum descontentamento. É uma sociedade que vive sob acusação mútua. Todos observam tudo e todos. Esse discurso bélico está em toda a parte da Coreia do Norte. É uma ferramenta de propaganda para deixar o povo em suspensão, como que preparado permanentemente para uma guerra, com a impressão de estarem sob ameaça constante dos seus principais inimigos: os EUA, o Japão e o governo da Coreia do Coreia do Sul. 

O que você conseguiu conversar com a população local? 

A comunicação com a população não é fácil, principalmente porque são poucas as pessoas que falam outra língua além do coreano. As que falam pertencem a quadros elevados dentro do regime. E os "bons partidos" desejados pelas mulheres são os que lidam com estrangeiros. Primeiro, porque eles têm oportunidade de receber moeda estrangeira, o que é altamente valioso no país, mesmo que seja uma pequena gorjeta. As conversas geralmente têm um filtro do discurso oficial. Essas acontecem com os guias que acompanham os estrangeiros. Um deles falava até português, pois o pai tinha visitado Lisboa nos anos 90 e o convenceu que era importante estudar a língua. Com os guias, que são pessoas que têm alguma ideia sobre o mundo exterior, dá para falar sobre alguns assuntos curiosos da vida cotidiana das pessoas, mas o país é sempre engrandecido e, às vezes, eles falam de uma realidade que nós vemos claramente que não existe. 

Por exemplo... 

Quando se visita fábricas, eles dão números extravagantes de produção em unidades completamente obsoletas e sem a mínima capacidade de fazer nada próximo daqueles números. Além disso, eles só mostram salas apropriadas para a visitação dos estrangeiros, onde tudo está perfeito. Com os guias é quase impossível ter conversa sobre temas polêmicos. No livro eu falo de um hotel enorme em Pyongyang com 200, 300 metros de altura. A construção começou no fim dos anos 80 e nunca terminou. Por dentro não há nada, só a parte de fora. Eu queria falar com a guia sobre o hotel e ela fingia que não ouvia e mudava de assunto. Só depois de muita insistência, ela falou que estava em construção e que ela terminaria em breve. E eu sei que a obra está parada há mais de 20 anos. A Coreia do Norte é um país que só tem uma TV e um canal de rádio. Os aparelhos de rádio são vendidos só com o botão de ligar e desligar. Os jornais têm sempre a foto do líder máximo na capa. Os estrangeiros têm que ter cuidado porque dobrar o jornal na altura da foto do líder é encarado como ato hostil. Uma pergunta que me fizeram muitas vezes tem uma malícia. Eles perguntam qual é o índice de criminalidade do país do visitante. Seja qual for a sua resposta, a deles é zero. Não tem como ganhar deles nesse quesito.

Cortes de cabelo aprovados pelo regime - Foto: AP

Ano passado, circularam imagens dos supostos cortes de cabelo permitidos aos norte-coreanos. Você verificou isso lá? 

Sim. Uma das coisas que me parece importante quanto à ideologia da Coreia do Norte é o aspecto nacionalista e a forma como os norte-coreanos são apresentados, como um povo superior. Isto está presente na propaganda do regime, que apresenta a população como um tipo único. As manifestações sincronizadas em estádio lotados, por exemplo, têm esse propósito da unificação, da padronização. É comum vermos cartazes com uma grande quantidade de pessoas muito semelhantes, com a mesma altura, os mesmos traços, as mesmas roupas, o mesmo corte de cabelo. Isto tem um fundo ideológico, não é uma questão meramente estética, que nasceu com o stalinismo. 

Uma reportagem do Sunday Times afirmou que norte-coreanos famintos estavam comendo os próprios filhos. Você se informou sobre isso? 

Eu fui a lugares bem distantes de Pyongyang e foi uma das experiências mais incríveis. Esses locais não são visitados por estrangeiros desde a Guerra da Coreia. Os adultos fugiam de mim, escondiam-se assustados. As crianças, mais curiosas, ficavam à minha volta, rindo, mas também com medo. Ali vê-se uma realidade completamente diferente da de Pyongyang. Tudo é muito precário e não é possível esconder a miséria. Não posso confirmar a reportagem. O mais próximo que cheguei de exuberâncias alimentares foi comer carne de cachorro. 

Como foi? 

Quando aconteceu, as pessoas estavam tão confortáveis com isso que não tive nenhum problema em experimentar e não me pareceu uma carne tão diferente de outras que comemos habitualmente. Não se repetiria, porque somos educados a não comer cachorro.

Balões preparados para o lançamento de Choco Pie em Paju - Foto: AP

Recentemente, sul-coreanos enviaram ao vizinhos balões (foto acima) com chocolates proibidos no Norte. Você considera esse tipo de ativismo eficaz? 

Não sei até que ponto isso chega à população. Ouvi falar de livros e filmes sul-coreanos que circulam no Norte, mas ainda atingem uma pequena faixa do povo. Ter esses produtos representa um nível de periculosidade enorme. Além disso, não são todos que têm acesso à eletricidade. Não sei até que ponto essas ações de ativistas não são anuladas pelo regime e pelas limitações sociais. A Coreia do Sul tem um nível de vida 75 vezes superior ao da Coreia do Norte, que tem um dos desenvolvimentos humanos mais precários do mundo. Do outro lado da fronteira, existe um país que está entre os mais desenvolvidos tecnologicamente, economicamente, um país do consumo. Na Coreia do Norte não existe o que consumir. Eu acredito que esse contato com o estrangeiro acabará trazendo o fim desse país. Assim como o visitante recebe uma informação ficcional do que é o país, os norte-coreanos recebem lições inventadas de como é o mundo exterior, que os fazem acreditar que são o país mais desenvolvido do mundo tecnologicamente, socialmente. Levar um pouco de cá para lá e trazer um pouco de lá para cá para os que não são diplomatas pode fazer com que alguma coisa mude naquele país que parece congelado e dê ao povo um choque de realidade. É incrível ainda termos cidades em que as pessoas vêm todas às janelas quando passa um estrangeiro, como se ele fosse um ET. Isso pode mexer com a cabeça das pessoas.

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