BRASIL 247 / Com informações da Agência Brasil
Por Cynara Menezes, via Socialista Morena e Jornalistas pela Democracia
Lembro vagamente que a repartição onde se solicitava a carteira era na avenida Sete, no centro de Salvador. No retrato 3 X 4 em preto e branco tirado no lambe-lambe, o cabelinho curto e a cara de menina recém-saída da infância. Eu tinha acabado de fazer 18 anos, estava na faculdade de jornalismo da UFBA e saí de lá com a carteirinha azul na mão, orgulhosa e confiante de, quem sabe, descolar algum trabalho fixo. Tirar a Carteira de Trabalho e Previdência Social era como conquistar um sonho de futuro, era sinônimo de independência financeira, de poder morar sozinha, de liberdade…
Desde os 17 eu já fazia estágio, primeiro na TV Bandeirantes, como produtora; depois, na TV Itapoan, tive uma curtíssima passagem como repórter esportiva que até hoje causa gargalhadas em quem assistiu. Meus primeiros empregos de carteira assinada foram mesmo em dois sindicatos, como estagiária de jornalismo: o dos petroleiros, que então se chamava STIEP –uma coincidência curiosa, porque tinha o mesmo nome do bairro onde moravam meus pais; dava um nó na cabeça das pessoas quando eu respondia que morava no STIEP e trabalhava no STIEP! Depois fui para os Telefônicos.
Só após formada tive meu primeiro emprego de carteira assinada como repórter, e as folhas anotadas se sucedem a partir da minha temporada de “foca” no extinto Jornal da Bahia: Jornal de Brasília, já na capital federal, Folha, Estadão, JBr de novo, Folha de novo e mais uma vez, na capital paulista, Estadão de novo, e meu último trabalho “na carteira”, na editora Abril, onde atuei na Veja e na VIP. Saí do prédio dos Civita na marginal Pinheiros em 2004, portanto há 15 anos não tenho anotações na minha surrada CTPS…
Não que eu não tenha trabalhado em outros lugares depois disso; infelizmente, as empresas de comunicação foram pioneiras em burlar as leis trabalhistas. A partir da década de 1990, quase todas passaram a contratar jornalistas como PJ (Pessoas Jurídicas), ou seja, terceirizados. Minha categoria, movida pela ilusão de “ganhar um pouco mais”, aceitou, precarizando a profissão de tal maneira que muitos de nós saímos de alguns trabalhos com uma mão na frente e outra atrás, e nenhuma perspectiva de aposentadoria.
Numa das primeiras páginas da minha carteira, as palavras de Murillo Macêdo, último ministro do Trabalho da ditadura militar. “O principal defensor dos interesses do trabalhador é o próprio trabalhador. Sem sua participação nenhuma conquista é legítima e duradoura. A Carteira de Trabalho, que a lei instituiu para proteger o trabalhador e documentar a história de sua vida no emprego, é uma dessas conquistas. Compete ao trabalhador zelar pela sua posse e integridade para que dela faça uso, quando necessário, na obtenção de direitos que a lei consagrou”, diz o texto, que agora soa nostálgico.
A CTPS tinha tanta importância que podia substituir o RG, de acordo com a lei 12.037, de 2009, que coloca a carteira de trabalho entre os documentos capazes de atestar a identificação civil, legalmente falando. Esta era, iniciada em 21 de março de 1932, com a criação da primeira carteira de trabalho, ainda no governo Getúlio Vargas, chegou ao fim esta semana.
Nesta terça-feira, o governo Bolsonaro anunciou a entrada em vigor da carteira de trabalho digital, documento totalmente em meio eletrônico que substitui a velha CTPS azulzinha… Ao ser contratado, o novo empregado não precisará mais apresentar a carteira em papel. Bastará informar o número do CPF ao empregador e o registro será realizado diretamente no computador. As anotações que antes ficavam no “caderninho azul” passarão a ser realizadas eletronicamente, e o trabalhador terá que baixar um aplicativo especialmente desenvolvido para celulares (com versões IOS e Android) ou acessar na internet. Ou seja, os trabalhadores mais humildes e pouco alfabetizados ficarão ainda mais à mercê dos maus empregadores.
Prevista na Lei da Liberdade Econômica de Bolsonaro, que reduz ainda mais os direitos trabalhistas, a nova carteira digital não permite mais que o trabalhador tenha em mãos, até como lembrança da vida, a caderneta com os empregos por onde passou. É emblemático que a carteira de trabalho desapareça de nossas vistas justamente quando temos, como resultado da macabra reforma trabalhista de Temer, cada vez menos brasileiros contratados formalmente: hoje, 11,7 milhões de trabalhadores no setor privado não são “fichados”, o maior contingente da série histórica iniciada em 2012, um aumento de 3,9% em relação ao trimestre anterior, 441 mil pessoas sem carteira a mais.
As anotações passarão a ser feitas eletronicamente. O trabalhador terá que baixar um aplicativo ou acessar pela internet. Ou seja, os trabalhadores mais humildes e pouco alfabetizados ficarão ainda mais à mercê dos maus empregadores
A “redução” de 0,6% no desemprego alardeada pelo presidente até no seu discurso na ONU foi puxada pelo trabalho informal, ou seja, sem carteira assinada. De acordo com o IBGE, os trabalhadores por conta própria também estão batendo recordes: 24,2 milhões de pessoas. No último trimestre, havia aproximadamente 28,1 milhões de pessoas subutilizadas –que trabalharam menos de 40 horas por semana ou não trabalharam. 12,6 milhões de pessoas continuam a procurar trabalho.
É improvável pensar que, com o fim da CTPS física, pensado para facilitar a vida do patrão, esta realidade se modifique. O futuro para o trabalhador brasileiro é aceitar, como prevemos, qualquer bico para sobreviver, sem garantia nem direito algum. A “assinatura” na carteira, que tanto nos aprazia ver, e tanto nos dava segurança, já era. O “caderninho azul” deixará saudade em quem a teve e em quem nunca a terá. Com informações da Agência Brasil
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