Por Humberto Pinho da Silva
Domingo. Tarde de Verão. Anos sessenta.
Na ampla varanda, virada para a cidadela, a menina de pele morena,
brinca.
Descalça, perna descoberta, num leve cicio, tagarela baixinho com o
boneco Bonifácio
Ao redor, espalhado no chão de marmorite, há fragmentos de antigos
brinquedos, roupinhas de variegadas cores, e folhas de papel de jornal, que lhe
servem de tapete.
A luz quente do sol da tarde, patina-lhe a pele bronzeada, cor de
centeio, e arranca brilhos e rebrilhos doirados, dos delicados e macios cabelos
castanhos.
Seus olhos escuros, lampejam de contentamento. Balançam, dançam, sem
cessar: ora se cravam no desengonçado boneco; ora se fixam, enternecidos e
ridentes, nos meus.
Paira no tépido ar, doce perfume rescendente, que vem da cozinha. É a
mana, que tem a massa do bolo da merenda, no forno.
Ao longe, muito ao longe, andorinhas acrobáticas riscam arabescos no
céu azul - ferrete; e passarinho, todo cinza, de peito manchado de amarelo, que
descansa na arvorezinha do quintal, canta, a espaços, chilreios tão
harmoniosos, que dir-se-ia que são para alegrar este quadro de sublime beleza.
Recostado no largo varandim de ferro, olho inebriado, em fascínio e
amor, a menina de pele morena.
Seus olhos meigos riem-se e saltam de alegria, e dos delicados lábios
vermelhos, vermelhos como cerejas, soltam-se inteligíveis palavras, tão suaves,
num murmúrio tão doce, que mal quebram o silêncio desta serena tarde de
domingo.
Se tivesse poder, poder mágico, a visão encantadora, permaneceria para sempre,
parada no tempo.
Mas a amorosa aguarela, de tons quentes, cheia de sol e poesia, não
passa, infelizmente, de saudosa recordação
***
Debruçado no parapeito da janela de meu quarto, sentindo a luz reconfortante
do sol de Inverno, bafejar - me o rosto, recordo o passado, que se esfuma,
deixando na memória, pálidas lembranças de felizes momentos.
Esse quadro, ocorrido num passado longínquo, vive dentro de mim: vejo,
nitidamente vejo, de alma enlevada: a menina, na flor da infância, na idade da
inocência, brincando descuidadamente, na sacada de sua casa.
Esta luz clara que acaricia-me a face; este sol refulgente e acolhedor,
é o mesmo que iluminou o quadro amoroso, o momento sublime, que vivi: de
menina, na flor da idade, brincando ao sol, na sacada de sua casa.
No crepúsculo da vida, na quietude do quarto, em época natalícia,
recordo, a menina que brincava ao sol, numa tarde de domingo.
Menina que esperava-me no portão de sua casa, e corria, enlaçando os
frágeis bracitos, ao redor de meu pescoço.
Onde estarão, agora, os lábios rubros, que se franziam em botão, para
cobrirem-me de carinhosos beijos insalivados?
E as mãos macias, cor de areia, minúsculas e aveludadas, que se colavam
às minhas, para correrem casas de sua casa?
E a menina, que brincava, inundada de sol, numa tarde de domingo, na
varanda de sua casa?
Decerto á casada. Cercada de filhos. Uma santa e sisuda mamã.
A tez, já não deve ser macia, como pétalas de rosas, nem, os lábios
rubros como cerejas, nem, os cabelos se doiram ao receberem luminoso raio de
sol.
Mas no carpo disforme - pelos anos e maternidade, - vive, dormindo e
sonhando, a menina de outrora, que brincava na sacada encharcada de sol.
Ao envelhecer, rodeada de netinhos travessos, há-de, por certo,
recordar com saudade, esse e outras cenas da infância feliz.
Compreenderá, então – se ler este recordo, – meu doce recordar.
Aguça, o rodar dos anos, as lembranças, e deixam-nos sensíveis ao tempo
que já não é…ao passado que passou.
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