Por BBC Brasil - Homem de 29 anos relata a experiência de trabalhar durante treze horas diárias, em condições precárias, no Rio de Janeiro
"Se você está achando ruim, pede a conta". Foi isso que J.S., de 29 anos, contou ter ouvido durante meses ao reclamar por, segundo ele, trabalhar treze horas diárias ─ além de sábados ─ e não receber as horas extras, ficar com salário atrasado e incorreto e dormir amontoado com mais 20 homens num alojamento com ratos, baratas e colchões rasgados.
Um dos 11 trabalhadores descobertos pelo Ministério Público do Trabalho do Estado do Rio de Janeiro (MPT-RJ) em condições análogas à escravidão nas obras da Vila dos Atletas, na Barra da Tijuca, na zona oeste da cidade, que abrigará mais de 17 mil competidores e equipes técnicas durante os Jogos Olímpicos de 2016, J.S. diz ter sido tratado "pior do que cachorro".
Arquivo pessoal
Operário revela que dormia em alojamento com ratos, baratas e colchões rasgados
Em contato mediado pelo MPT-RJ, o trabalhador concordou em conversar com a BBC Brasil desde que sua identidade fosse preservada e com uma foto de costas, por temer represálias.
O homem diz ter sido contratado pela empresa Brasil Global Serviços, que fornece mão de obra ao consórcio Ilha Pura (formado pelas empreiteiras Odebrecht e Carvalho Hosken), que toca a obra.
Já de volta ao Estado de origem, no Nordeste, o trabalhador falou por telefone à BBC Brasil, e descreveu detalhes dos quase oito meses no Rio. "Passei a primeira semana dormindo no chão. A casa era uma humilhação, de verdade. A gente foi tratado como bicho mesmo", conta.
A BBC Brasil entrou em contato com a Brasil Global Serviços (BGS) e o consórcio Ilha Pura. O advogado da BGS, Rômulo de Oliveira Nascimento, rejeitou as acusações do MPT-RJ e disse que "não existe nenhum vínculo, de qualquer natureza, que relacione a Brasil Global com o imóvel onde foram localizados os operários", além de ressaltar o "respeito às leis trabalhistas". O advogado não deixou claro quem seria o responsável pela contratação dos 11 trabalhadores resgatados.
Já o consórcio Ilha Pura afirmou que "mantém procedimentos rigorosos em quaisquer de suas relações trabalhistas, assegurando o atendimento às leis vigentes inclusive no que se refere às condições de trabalho de profissionais contratados por prestadoras de serviço que atuam no empreendimento" e disse que "identifica e fiscaliza alojamentos mantidos por seus fornecedores de mão de obra".
"Sobre as acusações que envolvem a Brasil Global Serviços, a Ilha Pura permanece apurando as informações e à disposição para colaborar com as autoridades", acrescenta o consórcio.
Após a fiscalização do MPT-RJ, a Brasil Global Serviços pagou R$ 70 mil em rescisões, (13º, FGTS, férias proporcionais) relativos à demissão dos 11 funcionários, além de ressarcir as passagens de vinda ao Rio e custear a volta aos seus Estados de origem. A empresa confirmou à BBC Brasil que vai recorrer das ações de danos morais impetradas na Justiça do RJ.
De acordo com a procuradora Guadalupe Turos Couto, que lidera as investigações no MPT-RJ, os próximos desdobramentos do caso incluem determinar se as empreiteiras Odebrecht e Carvalho Hosken podem responder por responsabilidade solidária, o que será crucial para a determinação do valor das indenizações, e posteriormente acionar penalmente os responsáveis.
J.S. e os outros dez colegas aguardam agora os processos judiciais. "Eles vão pagar pelo que fizeram com a gente", diz.
Veja os principais trechos do depoimento:
"Sou do interior do Nordeste e passei quase oito meses na obra da Ilha Pura, condomínio da Vila dos Atletas, no Rio de Janeiro. Na carteira de trabalho estava contratado como ajudante de carpinteiro, mas na prática ajudei com massa, reboco, carreguei sacos de cimento e também coloquei pisos.
Tudo começou com meu tio, que já estava trabalhando no Rio. Ele fez um contato, falei ao telefone com um encarregado, comprei a passagem de avião e fui. Mas quando eu cheguei, passei um mês parado, esperando entrevistas. Eles não davam explicação, diziam que tinha que esperar ser chamado.
Passei a primeira semana dormindo no chão. Depois me deram um colchão velho, rasgado, muito ruim mesmo. O alojamento era para dez pessoas, mas logo estávamos em 18 e, de repente, já eram 21 trabalhadores. Não tinha lugar para todo mundo, e, no começo, dormi na varanda. Depois fui dormir na garagem, com mais quatro colegas. Quando chovia, a gente se molhava inteiro.
Olha, a casa era uma humilhação, de verdade. A gente foi tratado como bicho mesmo, pior do que você trata um cachorro. Era lotado demais, e tinha barata, rato, cheiro de esgoto. Colchão rasgado, detonado. O pessoal dormia amontoado, e como tinham turnos diferentes, era sempre um entra e sai, uma confusão.
No primeiro mês, das entrevistas e seleção, ganhei R$ 560, incluindo R$ 300 de alimentação e R$ 260 pelos dias. Depois o trabalho começou para valer, e eu pegava às 7h e largava às 18h, 19h, às vezes 20h. Fazia hora extra todo dia, trabalhando uma média de 12 a 13 horas diárias. A semana era de segunda a sábado, a gente só tinha folga domingo.
Arquivo pessoal
Além de condições precárias de alojamento, trabalhador reclama de problemas com pagamentos
Mas eu logo vi que não era bem o que eu imaginava. O primeiro pagamento mesmo foi de R$ 850. Falaram que eram R$ 300 da janta e R$ 550 das horas (trabalhadas), mas veio errado. Nunca recebi as primeiras horas extras, nem os primeiros quatro sábados trabalhados.