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segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

VIAJANDO NO TEMPO

Como cidadão exilado em São Paulo durante metade da vida, não é raro ouvir em interurbanos esta pergunta de algum conterrâneo: Quando é que você aparece por aqui? Respondo que venho pensando nisso há muito tempo, mas sempre surge um motivo para impedir. Aqui entre amigos, vou confidenciar que esse motivo é sempre o mesmo: detesto viajar, e até hoje só gostei de uma viagem. Tenho procurado a origem dessa idiossincrasia, encontrei algumas pistas, mas nenhuma inteiramente convincente. Explica, mas não justifica, como se diz.

Uma reminiscência dos meus tempos de colégio interno, que se repetia a cada início e fim de férias, entra nessa categoria de explicação parcial. Sempre que eu transpunha em jardineira (ônibus d’antanho) os sessenta quilômetros de estrada de terra entre minha casa e o colégio, as constantes paradas para subir ou descer passageiros (aqui se diz catar capiau) transformavam o veículo em aspirador de poeira. Ela entrava por todas as janelas, o passageiro com seus pertences entrava ou saía pela porta, e o alimento que eu havia tomado costumava sair por onde entrou.

Esta experiência desagradável só explica minha repulsa por uma parte das viagens, pois deixou de ocorrer quando a poeira das estradas foi marginalizada pelo asfalto. Quanto aos aviões, não costumam fazer pinga-pinga para atender passageiros com galinhas, porcos, alimentos, gaiolas de passarinhos, malas, trouxas de roupas. E minha única viagem de navio – uma travessia do Canal da Mancha durante quatro horas – não me provocou enjoo (o enjôo ainda usava chapéu).

Em algumas andanças por livros que descrevem costumes medievais, constatei que na época se viajava muito, contrariando francamente o que eu imaginava. As estradas primitivas e os veículos pouco velozes de então haviam criado em mim a impressão de uma população arraigada aos seus lugares de origem, e de fato isso existia. Mas animais de transporte, veículos leves e abertos tornavam convidativas e agradáveis as viagens para quem gosta de viajar, o que exclui minha sedentária pessoa.

No mundo medieval, e até muito depois, as viagens quase não tinham o caráter de turismo, nem eram empreendidas com o objetivo de conhecer outras terras, outros costumes, outra gente. Nem por isso as pessoas desconheciam o que se passava em locais distantes, as informações circulavam profusamente por meio das descrições e relatos dos que viajavam; sempre interessantes, pois ainda se sabia conversar. Viagens de negócios, navegações comerciais, peregrinações, todas eram muito comuns na época. A piedade popular deslocava pessoas a grandes distâncias para cumprir alguma promessa, ou simplesmente venerar um santo, uma imagem milagrosa. Um exemplo bem conhecido eram as viagens a Santiago de Compostela, na Espanha. Ainda existem resquícios dos Caminhos de Santiago.

Antigamente não havia estatísticas para tudo, o que torna impossível comparar numericamente os objetivos das viagens antigas com os das atuais. As peregrinações religiosas foram quase inteiramente substituídas pelo turismo moderno, especializado em colocar bois diante de palácios. Hoje esse gado humano não consegue relatar nem comentar o que viu, mas existe o selfie (auto-retrato, em língua inteligente) para confirmar que esteve lá. Para algum leitor quase tão ultrapassado quanto eu, informo que o tal selfie é um recurso de celular inteligente, usado por um ser não inteligente para fotografar-se junto ao que julga inteligente. Já deve existir uma estatística classificando os lugares mais fotografados do mundo. Mas será que os bois auto-retratados entenderam os palácios? Tenho minhas dúvidas.

Nada disso explica minha condição de refratário a peregrinação, turismo ou qualquer outro tipo de viagem, no que sou fiel ao provérbio antigo aplicável a ambos:Boa romaria faz quem em casa fica em paz. Continuarei procurando os motivos da minha aversão a viagens, e os divulgarei quando (e se) encontrar.

(E a tal única viagem de que gostou? Vai passar de liso?).

Já ia esquecendo. Acho até que a minha má memória tem algo a ver com tudo isso. A tal viagem se deu num domingo de manhã, mais de vinte anos atrás. Eu estava rezando na igreja, enquanto aguardava o início da Missa. Passou ao meu lado uma família, e o perfume usado por um dos seus membros levou-me instantaneamente para a cidade onde estudei. Eu quase diria “em carne e osso”, tão reais eram para mim o local (uma rua central, diante de um bar-restaurante com cadeiras de engraxate), o dia da semana (domingo), a hora (11:55h), a época do ano (próximo das férias de julho), o ano (1956), o “assunto do dia” (campeonato nacional de futebol, cujas notícias o rádio transmitia). O tal perfume, muito usado na época, fez uma espécie de “ponte aérea”, mas até hoje não consigo lembrar de onde vinha o perfume que certamente havia naquele local, e que me proporcionou essa “viagem”. Tanto mais que nem sequer parei ali, pois só dispunha de cinco minutos para chegar ao colégio para o almoço.

Quem me dera que todas as viagens fossem fáceis e agradáveis como aquela. Mas em qualquer hipótese eu continuaria evitando o turismo tipo “gado humano”. (*) Jacinto Flecha é médico e colaborador da Abim

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