Todos os torcedores de futebol se parecem entre si como soldadinhos de chumbo. Têm o mesmo comportamento e xingam, com a mesma exuberância e os mesmos nomes feios, o juiz, os bandeirinhas, os adversários e os jogadores do próprio time. Há, porém, um torcedor, entre tantos, entre todos, que não se parece com ninguém e que apresenta uma forte, crespa e irresistível personalidade. Ponham uma barba postiça num torcedor do Botafogo, deem-lhe óculos escuros, raspem-lhe as impressões digitais e, ainda assim, ele será inconfundível. Por quê?
Pelo seguinte: há, no alvinegro, a emanação específica de um pessimismo imortal. Pergunto: por que vamos ao campo de futebol? Porque esperamos a vitória. Esse otimismo é o impulso interior que nos leva a comprar ingresso e vibrar os noventa minutos. E, no campo, o otimismo continua a crepitar furiosamente. Não importa que o nosso time esteja perdendo de 15 x 0. Até o penúltimo segundo, nós ainda esperamos a virada, ainda esperamos a reação. Pois bem: o torcedor do Botafogo é o único que, em vez de esperar a vitória, espera precisamente a derrota.
Os outros comparecem na esperança de saborear como um chicabon o triunfo do seu clube. Mas o torcedor do Botafogo é diferente: ele compra o seu ingresso como quem adquire o direito, que lhe parece sagrado e inalienável, de sofrer. Eis a verdade: ele não vai a campo ver futebol. O futebol é um detalhe secundário e, mesmo, desprezível. Ele quer, acima de tudo, desgrenhar-se, esganiçar-se, enfurecer-se e rugir contra Ney Franco.
No dia em que retirarem do torcedor alvinegro o inefável direito de sofrer e, sobretudo, o direito ainda mais inefável de descompor o seu técnico, ele ficará inconsolável, como um ser que perde, subitamente, a sua função e o seu destino. Tudo na vida é uma questão de hábito. E o cidadão que padece todos os dias acaba se afeiçoando ao próprio martírio, ou mais do que isso: o martírio torna-se insubstituível como um vício funesto.
E o que falar da torcida do Fluminense? Outras podem ser mais numerosas. Uma torcida, porém, não vale a pena pela sua expressão numérica. Ela vive e influi no destino das batalhas pela força do sentimento. E a torcida tricolor leva um imperecível estandarte de paixão. Exalta-se a torcida do Vasco, exalta-se a torcida do Flamengo, e querem esquecer a nossa. Benício Ferreira Filho dizia que a grande torcida é a do Fluminense. Ele tem razão: nada se compara à flama e à fidelidade do torcedor pó-de-arroz.
Nós, com a nossa crassa e ignara simplicidade, temos a mania de falar em "aristocrático clube das Laranjeiras". E eu vos digo : - "aristocrático" em termos. Será aristocrático porque, no seu quadro social, falta tudo, menos grã-finos. Mas há algo mais no Fluminense, algo mais do que a aristocracia que lhe atribuem. Mais exato seria dizer que ele é o clube de todas as classes.
Sim, amigos: há de tudo em Álvaro Chaves. Vocês querem tubarão? Afirmo-vos que os há de todos os tipos. Desde o tubarão de borracha, o tubarão de piscina, que as crianças cavalgam, até o tubarão mesmo, de insaciável voracidade. Costumamos desprezar o cartola. Mas vamos e venhamos: com o seu charuto afrontoso e ultrajante, a conspurcar de cinza todos os tapetes, ele tem o seu charme. Sim, no Fluminense, há cartolas em penca. Vocês querem o príncipe? É o que não falta no Fluminense. Esse grã-finismo autêntico é meio gostoso de se ver. Há também a família da classe média, a mocinha linda, o pai, a mãe, com os seus escrúpulos severos.
Nada, porém, é tão impressionante como o pé-rapado do Tricolor. Amigos, o Fluminense, com toda a sua aristocracia, têm na sua torcida, uma plebe que eu chamaria de épica. É uma multidão que o acompanha, com ululante fidelidade. Jogue o Fluminense com o Real Madrid ou com o Tabajara, e lá estarão esses heróis de pé descalço. Como são formidáveis ao empunhar a tocha do entusiasmo tricolor! Mas eu falei em pé-rapado. Para mim, não existe o pé-rapado, o borra-botas. O que existe é o homem, o ser humano, a levar nas costas, como o peixe da Emulsão de Scott, uma alma imortal. Um homem é sempre igual a outro homem.
Mas como eu ia dizendo: chamemos convencionalmente a plebe tricolor de plebe mesmo. É uma gente gloriosa, que não larga o clube, chova ou faça sol. Com a nossa bandeira erguida aos ventos da vitória, lá vão os pés-descalços atrás do time. Eu acredito que esses mesmos homens, em encarnações passadas, fizeram a Revolução Francesa e derrubaram bastilhas. Amigos, eis a verdade: os campeonatos e as revoluções vivem de paixão. Sem sentimento, não se derruba uma bastilha, nem se levanta um campeonato.
Eu acho profundamente cretina a expressão "plebe ignara". Ignara coisa nenhuma. Nós é que somos os ignaros, os crassos. Falta-nos isso que sobra no suposto pé-rapado, ou seja, a capacidade de vibrar, de se apaixonar, de viver e morrer por uma paixão. A parte mais humilde da nossa torcida é capaz, sim, de perecer pelo time. Nós temos o escrúpulo, o pudor de pular no meio da rua como um índio de Carnaval. A nossa alegria é meio envergonhada, meio arrependida. Mas a chamada plebe se embriaga com o próprio fogo. A vitória sobe-lhe à cabeça. O tricolor popular, na sua pura euforia, é capaz de trocar as pernas e cair, rente ao meio-fio, com a cara enfiada no ralo. Sim, amigos, falta-nos, a nós outros, a capacidade de tão violenta embriaguez clubística.
Quando o Fluminense precisa de número, acontece o suave milagre. Os vivos, doentes e mortos sobem as rampas. Os vivos saem de suas casas, os doentes de suas camas, e os mortos de suas tumbas. Quarta-feira, o Maracanã receberá dezenas de milhares de fanáticos, dispostos a vencer ou perecer. Será o maior clássico vovô de todos os tempos.
Esse texto foi fortemente baseado nas seguintes crônicas de Nelson Rodrigues:
"Sofrer pelo Botafogo" (Manchete Esportiva, 04/08/1956),
"A incomparável torcida tricolor" (Jornal dos Sports, 03/12/1959).
*Paulo Cézar da Costa Martins Filho é engenheiro / Fonte: www.jornalheiros.blogspot.com.br / Colaboração: Alexandre Magno Barreto Berwanger
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