Flávio Tavares *
Depois do horror e do luto, o caminho mais árduo vem agora – definir as responsabilidades e as culpas, para que a tragédia de Santa Maria não seja lembrada, apenas, quando se repita no futuro, noutro lugar e noutra dimensão. Sim, pois a fatalidade e os acidentes não existem como algo autônomo, não têm corpo nem movimento. São, apenas, invenção humana para tentar justificar o injustificável. Tudo aquilo que o desleixo nunca procurou evitar, passa a chamar-se “fatalidade” ou, no mínimo, “acidente”.
Essa mentira supera a linguagem e vira um estilo, como agora, em que ninguém assume responsabilidades. Na tragédia de Santa Maria, tudo é absurdo e irônico. O país e o mundo lá puseram sua dor, mas todos são evasivos. O governador gaúcho pediu não antecipar culpas sobre as causas “antes do final da perícia”, como se não fosse fácil entender que uma boate para 900 pessoas, lotada com quase o dobro, não poderia ter só uma porta, sem saídas de emergência. O prefeito municipal (experiente político, deputado estadual por 30 anos) desconversou quando a TV lhe fez a pergunta. O comandante do Corpo de Bombeiros, idem. “As licenças estavam em ordem e havia extintores”, mas estes não funcionaram.
No horror da boate Kiss, “Beijo”, propriedade da “Santo Entretenimento Ltda”, a ironia começa na denominação e se amplia na nota em que se desculparam pela tragédia. Escreveram: “A bem da verdade, diante dos inúmeros boatos sobre o ocorrido, esclarecemos que a situação da empresa se encontra regular, com os equipamentos previsíveis e necessários para proteção e combate contra incêndio, aprovado pelo Corpo de Bombeiros, adequado às necessidades da casa e de seus frequentadores”. E conclui “creditando o terrível acontecimento a uma fatalidade que só Deus tem condições de levar…”.
Os 231 mortos são um boato e a fatalidade é divina? Ou houve um homicídio coletivo, programado como entretenimento num cenário de morte, com a desídia de todos? Agora, tudo se juntou – cobiça, sanha de lucro fácil, descaso e irresponsabilidade dos donos da boate, mais a fiscalização carcomida pelo desleixo ou pelo suborno, que só olha papéis. E tudo envolto na nuvem do grupo musical que, com a irresponsável pirotecnia, prometia “o auge”, um orgasmo de acordes e chispas.
* * *
A tragédia exige pensar a fundo e indagar sobre o hedonismo da sociedade de consumo, que transforma tudo em mercadoria de venda fácil. Mais do que lugar de diversão, as boates são catedrais do aconchego e do amor. Ali os jovens expõem sonhos e devaneios, trocam abraços e beijos. Por isso, morrer numa boate é como ser executado pelas costas pelos próprios sonhos. Se uma ponte caísse, engolindo ônibus e carros, seria também brutal mas haveria, pelo menos, possibilidade de explicação técnica.
A tragédia de agora não nasce de um erro técnico em algo sofisticado. Nasce do crime em algo simples, da cobiça de irresponsáveis e de um poder público burocrático, incapaz de “licenciar” corretamente sequer a diversão.
Santa Maria não é um caso isolado. É o retrato da nossa tolerância com o engano.
Essa mentira supera a linguagem e vira um estilo, como agora, em que ninguém assume responsabilidades. Na tragédia de Santa Maria, tudo é absurdo e irônico. O país e o mundo lá puseram sua dor, mas todos são evasivos. O governador gaúcho pediu não antecipar culpas sobre as causas “antes do final da perícia”, como se não fosse fácil entender que uma boate para 900 pessoas, lotada com quase o dobro, não poderia ter só uma porta, sem saídas de emergência. O prefeito municipal (experiente político, deputado estadual por 30 anos) desconversou quando a TV lhe fez a pergunta. O comandante do Corpo de Bombeiros, idem. “As licenças estavam em ordem e havia extintores”, mas estes não funcionaram.
No horror da boate Kiss, “Beijo”, propriedade da “Santo Entretenimento Ltda”, a ironia começa na denominação e se amplia na nota em que se desculparam pela tragédia. Escreveram: “A bem da verdade, diante dos inúmeros boatos sobre o ocorrido, esclarecemos que a situação da empresa se encontra regular, com os equipamentos previsíveis e necessários para proteção e combate contra incêndio, aprovado pelo Corpo de Bombeiros, adequado às necessidades da casa e de seus frequentadores”. E conclui “creditando o terrível acontecimento a uma fatalidade que só Deus tem condições de levar…”.
Os 231 mortos são um boato e a fatalidade é divina? Ou houve um homicídio coletivo, programado como entretenimento num cenário de morte, com a desídia de todos? Agora, tudo se juntou – cobiça, sanha de lucro fácil, descaso e irresponsabilidade dos donos da boate, mais a fiscalização carcomida pelo desleixo ou pelo suborno, que só olha papéis. E tudo envolto na nuvem do grupo musical que, com a irresponsável pirotecnia, prometia “o auge”, um orgasmo de acordes e chispas.
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A tragédia exige pensar a fundo e indagar sobre o hedonismo da sociedade de consumo, que transforma tudo em mercadoria de venda fácil. Mais do que lugar de diversão, as boates são catedrais do aconchego e do amor. Ali os jovens expõem sonhos e devaneios, trocam abraços e beijos. Por isso, morrer numa boate é como ser executado pelas costas pelos próprios sonhos. Se uma ponte caísse, engolindo ônibus e carros, seria também brutal mas haveria, pelo menos, possibilidade de explicação técnica.
A tragédia de agora não nasce de um erro técnico em algo sofisticado. Nasce do crime em algo simples, da cobiça de irresponsáveis e de um poder público burocrático, incapaz de “licenciar” corretamente sequer a diversão.
Santa Maria não é um caso isolado. É o retrato da nossa tolerância com o engano.
* Flávio Tavares é jornalista e escritor, gaúcho, autor do livro ‘Memória do Esquecimento’ (Editora Globo, 1999).
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