Por Renata Galf | Folhapress
Lula e Jorge Messias | Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil
O governo do presidente Lula (PT) iniciou uma tentativa de aval do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) para atuar contra fake news na eleição, movimento que gera um temor de efeito cascata para advocacias públicas estaduais e municipais.
A AGU (Advocacia-Geral da União), órgão que representa o governo juridicamente, fez uma consulta ao tribunal questionando se caberia à Justiça Eleitoral julgar ações que visem restringir ou remover propaganda eleitoral que contenha desinformação "sobre política pública federal, de interesse da União".
O órgão afirma ainda que o "interesse de agir da União, na preservação e integridade da política pública", pode, em tese, ensejar este tipo de pedido. Fazendo referência indireta a uma fala do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), o documento traz como exemplo candidato que "promete acabar com a obrigatoriedade de vacinas afirmando que elas causam Aids".
Em suas considerações, o próprio órgão reconhece que a AGU não está entre os atores com legitimidade para ingressar com ação eleitoral —rol que abrange partidos, candidatos e o Ministério Público.
Especialistas consultados pela Folha avaliam que a consulta da AGU demonstra interesse em obter uma resposta no sentido de que ela possa mover este tipo de ação na Justiça Eleitoral.
Ou então em conseguir um entendimento que ajude a prevenir um cenário em que eventuais ações do órgão contra propaganda eleitoral acabem não sendo aceitas na justiça comum, sob o entendimento de que seriam de competência da eleitoral. Nesta hipótese, porém, ela não teria a vantagem dos ritos processuais mais céleres da Justiça Eleitoral.
Os especialistas apontam ainda que um eventual alargamento nesse sentido para a advocacia da União poderia gerar um efeito cascata para advocacias públicas estaduais e de municípios. Neste cenário, um candidato a reeleição poderia ser beneficiado não só por meio de ações movidas pela sua equipe jurídica de campanha, mas pelas procuradorias.
Ainda não há data prevista para análise do caso. O relator é o ministro André Ramos Tavares. Nas consultas eleitorais, é preciso que as perguntas sejam formuladas de modo hipotético, sem ligação com casos concretos, senão o TSE pode simplesmente não aceitá-las. Nesta hipótese, a AGU só viria a ter uma resposta ao efetivamente ingressar com ações deste tipo.
A consulta ao TSE é apresentada em nome do advogado-geral da União, Jorge Messias, cargo indicado pelo presidente Lula, e pelo procurador-geral da União, Marcelo Eugênio Feitosa, sendo assinada por este último. Ele é responsável por representar a União junto aos tribunais superiores, estando diretamente subordinado a Messias.
A AGU questiona ainda se outros pedidos como de reparação por danos decorrentes da suposta desinformação seriam de competência eleitoral.
Em parecer, o Ministério Público Eleitoral defende o não reconhecimento da consulta, sob a o argumento de que o debate sobre a competência ou não da Justiça Eleitoral exige o exame de fatos concretos.
Já a área consultiva do TSE, em seu parecer, defendeu que as questões da AGU fossem respondidas negativamente –orientação que pode ou não ser seguida pelos ministros da corte.
Nos últimos anos, o TSE tem ampliado sua jurisprudência e as regras eleitorais para coibir desinformação eleitoral, o que se aprofundou sob a Presidência do ministro Alexandre de Moraes. Sua sucessora, a ministra Cármen Lúcia, que assumiu a chefia do órgão neste mês, também promete combate duro contra fake news.
Neste ano, ainda sob Moraes, o TSE inaugurou o Ciedde (Centro Integrado de Enfrentamento à Desinformação e Defesa da Democracia) e assinou acordos de cooperação com diferentes órgãos públicos, entre eles a AGU.
Carla Nicolini, advogada especialista em direito eleitoral e membro da Abradep (Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político), destaca que a competência da Justiça Eleitoral foi estabelecida para proteger os interesses dos candidatos e dos partidos, não de terceiros alheios ao processo.
"Você tem uma possibilidade de ampliar demais a competência da Justiça Eleitoral, ainda mais numa eleição municipal. Se você, por exemplo, disser que a União pode entrar sempre na Justiça Eleitoral, o mesmo vai valer para o estado e vai valer para o município", diz.
Caso eventual resposta do TSE seja na linha de afirmar que a Justiça Eleitoral não é competente para este tipo de ação, ela explica que a justiça comum não se torna automaticamente competente. Juízes federais podem entender, por sua vez, que o caso não é de sua competência por se tratar de desinformação na propaganda eleitoral.
Caio Silva Guimarães, membro da Abradep e servidor da Justiça Eleitoral, afirma que, se eventual conteúdo critica uma política pública que é bandeira de algum candidato concorrendo à reeleição, por exemplo, então possivelmente haveria uma ligação com as eleições justificando a competência da Justiça Eleitoral para julgar o processo.
Ele explica, por outro lado, que, como a AGU não está no rol dos habilitados a ingressar com ações eleitorais, um dos caminhos que ela poderia seguir é o de encaminhar as eventuais peças de desinformação para análise do Ministério Público.
Francisco Brito Cruz, que é diretor-executivo do InternetLab, centro de pesquisa sobre direito e tecnologia, avalia que a AGU possivelmente também tenha interesse em uma resposta no sentido de dar sinal verde para atuação contra propaganda eleitoral na justiça comum.
"Eu acho que é temerário ter a AGU como uma outra controladora do que pode ser dito durante o processo eleitoral", diz. "Se abre essa porta, não é só a AGU que vai poder fazer isso", afirma ele também destacando eventual efeito cascata.
"A discussão eleitoral é uma discussão sobre política pública, você vai acabar criticando a política pública do outro e você vai falar que não está fazendo sentido."
Para Yasmin Curzi, professora da FGV Direito Rio, eventual alargamento para atuação da AGU é preocupante e abriria risco de arbítrio. Ela vê, como possível, que governos apontem a ausência de informação oficial em determinada publicação sobre alguma política para alegar desinformação.
"A gente está falando principalmente da possibilidade de ter uma defesa não de políticas públicas estatais, mas de políticas de governos então aí que mora o perigo na minha visão", diz. "Quando a gente fala sobre políticas públicas, as duas coisas são muito misturadas."
Fora do contexto eleitoral, a AGU tem atuado por meio da Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia, criada no governo Lula com o objetivo de coibir desinformação. Recentemente, o órgão ingressou com pedido de direito de resposta contra o coach e empresário Pablo Marçal alegando ofensa à honra e à imagem da União.
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