Os deslocamentos provocados pelas políticas urbanas no período afetaram especialmente as populações negras, como a que vivia no bairro do Bixiga
Por Agência Brasil * © Rovena Rosa/Agência Brasil
No pátio interno entre os prédios do Conjunto Habitacional Santa Etelvina II, um pedaço foi cultivado com vasos de plantas com uma folhagem densa que lembra um quintal. O verde fica logo abaixo da janela do apartamento térreo de Doné Kika de Bessem, que se mudou para a Cidade Tiradentes, extremo leste paulistano, no fim da década de 1980, deixando de pagar aluguel no Bixiga, região central de São Paulo.
A mudança da família de Kika para o bairro, cerca de 30 quilômetros distante do centro da cidade, ocorreu como parte de uma política iniciada na década de 1970. Em um período de pouco mais de 20 anos, foram construídas pela Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo (Cohab) 42 mil casas e apartamentos na região, até então uma área rural. Parte das terras, inclusive, pertenceram a uma fazenda que usou mão de obra escravizada.
Foram levadas para o bairro, que inicialmente não tinha nenhum tipo de infraestrutura, tanto pessoas que tinham dificuldades de pagar aluguel nas partes mais centrais da capital quanto famílias que eram removidas de favelas, ocupações e cortiços, muitos demolidos para dar espaço a projetos de alargamento e expansão de ruas e avenidas.
“No começo dos anos de 1980, a Cidade de Tiradentes tinha 8 mil habitantes e, no final dos anos 1990, estava ultrapassando os 200 mil habitantes. Então, a Cidade Tiradentes é considerada o maior fenômeno de crescimento urbano dentro da cidade de São Paulo, que é o maior fenômeno de crescimento urbano do mundo, segundo muitos autores”, explica o historiador e urbanista do Instituto Bixiga Edimilsom Peres Castilho, que defendeu uma tese de doutorado sobre a política habitacional do período da ditadura militar.
Os deslocamentos provocados pelas políticas urbanas no período afetaram especialmente as populações negras, como a que vivia no bairro do Bixiga. O local abrigou os remanescentes do Quilombo Saracura, espaço de resistência urbana de ex-escravizados à beira do córrego de mesmo nome. Isso fez com que a Cidade Tiradentes se tornasse um dos distritos com maior proporção de pessoas negras da capital paulista. Segundo levantamento da Rede Nossa São Paulo com base em dados de 2019, são pretos e pardos 56,1% dos moradores do bairro.
As investidas contra a população negra que vivia na região do Bixiga começaram antes, com o plano de avenidas radiais, que saem do centro para as extremidades da cidade, proposto na década de 1920 e executado a partir da década de 1930. “A Avenida 9 de Julho vai ser a primeira avenida construída nessa proposta de criação em avenidas de fundo de vale [sobre rios e córregos canalizados]. Vai ser construída sob a justificativa de interligar, de reurbanizar o Vale da Saracura, mas interligar também o centro da cidade aos bairros da Companhia City [empresa que planejou diversos bairros paulistanos], que estavam sendo construídas do outro lado da Avenida Paulista”, detalha Castilho.
A Avenida 9 de Julho corta o bairro da Bela Vista, onde está inserido o Bixiga, que não é reconhecido nos mapas oficiais. A Avenida Paulista separa a Bela Vista dos bairros dos Jardins.
Segundo o pesquisador, nesse momento, a remoção das pessoas negras da parte da cidade que começava a se valorizar já estava entre as intenções dos administradores municipais.
“O primeiro motivo de canalizar o rio era para evitar o contato da água com essa população que dependia da água. Tirando a água, você tira a população ribeirinha, tira as bênçãos da cultura negra, você tira a pessoa que usava água para produzir os seus quitutes, tira a lavadeira, que lavava a roupa para os barões do café na [Avenida] Paulista”, ressalta o historiador com base em declarações de autoridades da época.
Ao longo do século 20, o bairro recebeu imigrantes portugueses e italianos que também ajudaram a mudar gradualmente a composição populacional do bairro.
Despejos e demolições
Na década de 1960, o plano da prefeitura de São Paulo de alargamento de vias previa a extinção da Rua da Assembleia e a demolição de diversos casarões na Rua Jandaia, parte do Bixiga. As obras permitiram a ligação da Avenida 23 de Maio com a Radial Leste. Com as desapropriações, diversos imóveis ficaram vazios e acabaram ocupados por famílias com dificuldades de pagar por moradia na região central.
“Quando eu era bem pequenininha, acho que 1 ano, 2 anos [de idade] no máximo, eles vieram morar na Bela Vista. Então, meu pai estava trabalhando na Bela Vista, nessa rua mesmo, se eu não me engano, que é a Rua da Assembleia”, conta Elaine Mineiro, atualmente vereadora pelo PSOL, mas que à época havia acabado de chegar com a família de Guarulhos, na Grande São Paulo.
Assim, o pai de Elaine pôde gastar menos tempo nos deslocamentos diários. “Meu pai começou a trabalhar ali. Era muito ruim pra ele ficar indo e voltando de Guarulhos todo dia”, lembra. Em 1987, a prefeitura conseguiu a reintegração de posse dos imóveis e demoliu os casarões. Debaixo das construções foram descobertos os arcos que haviam sido construídos por imigrantes italianos e podem ser vistos atualmente na Praça dos Artesãos Calabreses.
Com a remoção, foram oferecidas opções de moradia para a família em Cidade Tiradentes ou no Parque Santo Antônio, na zona sul da cidade.
“Só que eles escolheram sem ter a mínima ideia do que era a Cidade Tiradentes. Só falaram que era na zona leste. Depois que eles descobrem o que é a Cidade Tiradentes. Meu pai tinha que andar 40 minutos pra conseguir pegar um ônibus para chegar ao centro. A gente também. A primeira série eu fiz andando 40 minutos para ir e 40 minutos para voltar todos os dias”, diz Elaine sobre os impactos da mudança na vida da família.
Além de enfrentar as distâncias e a falta de transporte, a família de Elaine foi morar em uma das casas padronizadas e sem infraestrutura básica. “Quando a gente chega, não tem nada. Inclusive a gente buscava água numa bica”, conta. “Depois começa a passar caminhão-pipa, acho que duas vezes por semana”, lembra. Os novos moradores esperam mais de um ano para ter água e luz em casa. “Agora, asfalto demorou bastante. Pelo menos uns cinco, dez anos ali sem asfalto.”
Da escravidão ao cortiço
Os projetos de reformulação viária na capital paulista coincidem, de acordo com Peres Castilho, com um período de dificuldades econômicas para as pessoas mais pobres. “Você tem, então, um aumento de custo muito grande, que vai dificultar a permanência de muitas famílias no centro da cidade de São Paulo, nas regiões centrais”, enfatiza sobre os efeitos das políticas econômicas da ditadura.
No fim da década de 1980, Doné Kika vivia de aluguel, como grande parte das pessoas negras que habitavam a região do Bixiga. “Eu morei na Rua Santo Antônio. Lá a gente morava e tinha um salão [de beleza] embaixo, na sala [da casa]. Morava com a minha prima e meus filhos. Depois, nós resolvemos ficar só com o salão, que estava tudo bem, a gente estava conseguindo pagar, e fomos mudar para a Praça 14 Bis, bem frente para a Vai-Vai [escola de samba]”, diz sobre o período em que morou na praça, que fica na Avenida 9 de Julho.
Atualmente, o movimento social Saracura Vai-Vai trabalha para preservar a memória do bairro, depois que as obras de construção da Linha Laranja do Metrô levaram à derrubada da sede que a escola de samba ocupou por 50 anos. No local foi encontrado um sítio arqueológico. Hoje, o distrito da Bela Vista, região onde estava o Quilombo Saracura e era conhecida como Pequena África no início do século 20, tem, segundo dados da Rede Nossa São Paulo, 21,6% de população negra.
“Nós morávamos ali no segundo andar, um apartamento antigo, mas grandão, dava para a gente pagar”, diz Kika sobre a vida na Praça 14 Bis. Boa parte da população do bairro vivia, nessa época, em condições mais precárias, alugando pequenos espaços em casarões antigos. “Tinha gente que morou a vida toda no cortiço. Por exemplo, o meu genro mesmo morava num casarão. Minha filha, quando casou com ele, morava num quartinho lá nesse cortiço”, relata.
Por isso, muitas pessoas que moravam no bairro estavam inscritas nos programas de habitação. Kika diz que foi chamada para morar em Cidade Tiradentes pelo cadastro que sua mãe tinha feito dez anos antes. “Minha mãe já tinha morrido. Não era mais a casa que a gente fez a inscrição, era apartamento”, lembra sobre quando decidiu se mudar para o imóvel de 42 metros quadrados em que vive até hoje, aos 75 anos de idade.
“Vim morar aqui com o sonho da casa própria”, diz sobre o sentimento que levou a se transferir para o extremo leste da cidade. “Eu cheguei aqui era muito mato, não tinha tanto apartamento, tanta casa como tem agora. Não tinha feira, não tinha hospital, não tinha padaria”, acrescenta, ao comentar as diferenças de infraestrutura em relação à parte central da capital paulista. “Quem passava aqui eram os cavalos, tinha a vaca ainda que andava no meio do caminho”, lembra, ao falar sobre as dificuldades de transporte que a família passou a enfrentar para trabalhar e estudar. Atualmente, ainda é possível ver cavalos ou galinhas em alguns terrenos do bairro.
A família de Kika havia chegado à região do Bixiga vinda de Campos do Jordão, no interior paulista. “Minha avó era uma religiosa de matriz africana. Ela era uma mulher nascida na escravidão”, conta sobre a história da família. Apesar de legalmente libertada pela Lei do Ventre Livre, que determinava que eram livres as crianças nascidas a partir de 1871, a avó de Kika não escapou da servidão. “Ela foi uma escrava do trabalho doméstico”, enfatiza a neta, que também se tornou uma líder religiosa.
A bisavó de Doné Kika veio escravizada, segundo ela, da região do Abomei, onde atualmente fica o Benim, na África. Por isso, ela segue o candomblé de tradição Jeje-Mahi. A família se instalou no local onde vivia a população remanescente do Quilombo Saracura. “Juntou-se um grupo que já era aquilombado com o êxodo dos irmãos pretos que eram escravizados nas fazendas”, explica sobre como a existência da população negra no local atraia pessoas pretas recém-chegadas à cidade.
Violência e reação pela cultura
A falta de infraestrutura e de laços comunitários acabaram por propiciar o crescimento da violência urbana em Cidade Tiradentes. Os dados da Rede Nossa São Paulo mostram que o distrito registra 16 homicídios para cada grupo de 100 mil habitantes, enquanto a média na cidade é de 6,6 homicídios. A idade média, ao morrer, em Cidade Tiradentes é de 61 anos, enquanto a média da capital paulista é de 71 anos, chegando a 82 no Jardim Paulista, na zona oeste.
Aos 5 anos de idade, a família de Elaine Mineiro foi cortada por essa realidade. “Meu pai continuou trabalhando na mesma empresa. Ele foi para uma festa de fim de ano da empresa e não voltou mais”, conta a vereadora. “A gente encontrou ele baleado no hospital em Itaquera [zona leste]. A gente não sabe o que aconteceu, não houve nenhum tipo de investigação”, acrescenta.
Para não ficar exposta à violência das ruas, Elaine foi incentivada pela mãe a frequentar um espaço cultural mantido por uma entidade católica. Assim, ela acabou envolvida na cena artística do bairro, que floresceu em reação aos problemas estruturais. “Aos 15 anos eu entrei no [Espaço Cultural] Honório Arce, que era um coletivo que naquela época fazia o que hoje a gente chama de sarau: a gente chamava artistas da região e também fazia discussões políticas.”
A região que, segundo Elaine, ficava fora do mapa dos incentivos culturais públicos, acabou desenvolvendo diversos grupos artísticos, como a companhia teatral Pombas Urbanas. “Eu acho que um dos pontos que continua [até hoje] é uma militância mais progressista e com questões novas, que fazem o debate racial de uma forma diferente do que era debatido antes dentro dos partidos, que são os coletivos de cultura”, diz.
Em 2004, parte das edificações da fazenda Santa Etelvina foram transformadas em uma casa de hip-hop, preservando a memória da região. Alguns imóveis da sede da fazenda já haviam sido demolidos para a construção de um terminal de ônibus.
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