por Jade Coelho / Mari Leal**Foto: Reprodução/FreeImages
De janeiro a dezembro de 2020 a Bahia registrou 2.662 ocorrências de crimes sexuais contra crianças, adolescentes e jovens com idades de 0 a 18 anos. Deste total, no que se refere a queixas de estupros, 974 tem como vítimas crianças e adolescentes com idades entre 0 e 12 anos (incompletos) e 1.160 contra vítimas com idades a partir de 12 a 18 anos.
Em comparação com o 2019, quando o total de ocorrências semelhantes foi de 2.866, observa-se uma leve redução, no entanto, a sombra da subnotificação, sobretudo em um ano marcado por profundas mudanças ocasionadas pela pandemia, é apontada como certa por especialistas. Os dados são da Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP-BA).
Para além da subnotificação de registros de ocorrências, a promotora Eliana Bloizi, que atua na Vara de Crimes Contra Crianças e Adolescentes do Ministério Público da Bahia lança luz sobre outra realidade que também vela uma realidade extremamente cruel, a dificuldade de investigação e apuração que deixa na realidade uma marca de impunidade. De acordo com Eliana, aproximadamente um terço dos registros ficam sem apuração e os motivos podem ser diversos.
“É possível que tenha uma subnotificação de informação, até porque são crimes que ocorrem na clandestinidade. Em média, 41% dos agressores, segundo as pesquisas, são padrastos, pais ou outros membros da família e que estão dentro de casa. São crimes difíceis de apurar exatamente por conta da clandestinidade e da falta de testemunha. E pior de tudo, são aqueles chamados crimes que ‘levam a responsabilidade’ para a própria vítima, nesse caso, crianças e adolescentes com a personalidade em formação”.
A promotora avalia que as crianças e adolescentes em condição de violência temem a repercussão que uma revelação das agressões pode impor ao ambiente familiar e social, pois, podem ocasionar a prisão dos agressores, com os quais a vítima possui vínculo familiar/afetivo, ou o medo da reação em ambientes de convivência, como a escola, por exemplo.
Entre janeiro e junho de 2020, o total de ocorrências registradas era 771, número também inferior a igual período de 2019, quando haviam sido registradas 1.054 ocorrências em delegacias. Na ocasião, o Bahia Notícias conversou com a defensora pública que atua na Especializada de Defesa da Criança e do Adolescente da Defensoria da Bahia, Laíssa Rocha, que também alertou para as subnotificações.
“É muito provável que haja subnotificação. A gente está em um momento de isolamento social e suspensão das aulas, então essas crianças e adolescentes estão confinadas em seus lares e junto com seus possíveis agressores. Pelo que a gente sabe, e isso é estatística, que as violências contra crianças e adolescentes são praticadas por pessoas muito próximas e familiares. Fora isso, a escola é uma importante fonte de denúncia. Muitos casos vem à tona na escola” (reveja).
De acordo com Eliana Bloizi, é muito alto o número de denúncias e estas também chegam ao poder público por meio da Secretaria Nacional de Direitos Humanos e do Disque 100. Novamente, a dificuldade de investigação e apuração dos casos se impõe como elemento dificultador, favorecendo a manutenção da cadeia de violências. Como lista Eliana, as impossibilidades para uma investigação eficaz vão desde a falta de material humano nas delegacias a arestas observadas nas próprias denúncias.
“Dessas notificações que são feitas, iniciadas pelo Disque Denúncia, eu digo seguramente que 70% a 80% não chegam a ser apuradas porque as pessoas não são encontradas. Ou quando apuram, é um vizinho em um momento de briga, aí cria aquela situação de trote e inventa uma história. Tem ainda uma situação pior, que é quando o fato realmente ocorreu, mas até que a delegacia apure ou que chegue no Ministério Público, a própria família já resolveu mudar a história e nega tudo. São crimes muito difíceis de serem apurados”, reafirma a promotora.
Sobre 2020 especificamente, Eliana Bloizi ressalta que um dos fatores que deixou ainda mais lenta as apurações foi o fato de muitos delegados, com idades acima de 60 anos, ou seja, parte dos grupos de risco da Covid-19, não estarem trabalhando presencialmente. Destaca também o elevado quantitativo de profissionais que solicitaram ou foram sensibilizados à aposentadoria.
“Em alguns casos ano passado eu chamei o responsável, ouvi presencialmente lá na sede do Ministério Público, no Centro de Apoio Operacional, tomei por termo, encaminhei denúncia sem o inquérito policial”, relembra, reforçando as dificuldades encontradas nos caminhos entre um registro de crimes sexuais contra crianças até uma eventual e necessária punição dos agressores.
“Ainda não existem inquéritos policiais 100% digitalizados. Nós recebemos o inquérito ainda no formato físico e a digitalização é feita antes de os inquéritos irem para os promotores de justiça que atuam na área. Acaba que o trabalho é feito de uma forma muito lenta e artesanal, precária”, incrementa a promotora.
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