O sistema de cotas tem provocado fortes debates. Conheço um médico cuja filha já fez três tentativas de ingressar numa Faculdade de Medicina. Quer seguir a mesma carreira de seu pai. No último vestibular de que participou sua média final foi 8,1, mas não alcançou a vaga e tomou conhecimento de que um cotista negro está estudando em vaga a que chegou com média pouco superior a 5,0. Certamente pode haver algum tipo de manifestação racista na faculdade por conta disso Entretanto, esse tipo de fato não é recente. Uma das primeiras leis instituindo cotas na educação pública brasileira completou, em 2013, 45 anos. Trata-se da Lei nº 5.465, de 3 de julho de 1968, mais conhecida como a “Lei do Boi”. Essa lei assegurava reserva de vagas tanto no ensino médio quanto em instituições superiores, assegurando 50% das vagas nos estabelecimentos de ensino médio agrícola e nas escolas superiores de agricultura e veterinária mantidos pela União. A lei estabelecia que as vagas ficassem disponíveis para atender às demandas de formação específica para alguns segmentos sociais;
A “Lei do Boi” foi revogada em 1985, ou seja, 17 anos após a sua criação. Embora estabelecesse que as vagas se destinassem aos filhos de proprietários e não proprietários rurais, é mais do que lógico que os beneficiários da lei foram apenas os filhos da elite rural. E por uma razão muito simples. Ainda hoje a agricultura depende do trabalho de todos os membros da família, pais e filhos, para garantir sua subsistência e sobrevivência. A mais de quatro décadas a situação não era melhor do que hoje. Todavia existiam boas razões para questioná-la. Ao desconsiderar as condições sociais dos filhos dos camponeses, a "Lei do Boi" beneficiava apenas os filhos da elite rural. E, o que era pior, pois estabelecia uma política de caráter permanente, uma vez que era nem havia previsão para seu término;
Ninguém pode ser totalmente contrário a que se dê oportunidade a diversos segmentos da sociedade que não têm acesso às universidades, em especial as públicas. Na realidade, deveria haver cotas para estudantes oriundos de escolas públicas com um determinado limite de renda familiar. Não haveria do que se reclamar, pois seria algo bastante útil e justificado. Também poderiam ser aproveitadas as vagas ociosas em faculdades particulares, pelo mesmo critério de carência. Diferentemente da legislação atual, a “Lei do Boi” não tinha objetivos de promover justiça de reparação ou de busca de equidade, embora com algumas contestações, porque não se propunha a eliminar distorções sociais que ainda hoje atingem gerações inteiras de famílias a nascerem e morrerem integrando os mais baixos degraus da hierarquia social;
Naquela época, a “Lei do Boi” atendia aos interesses da elite rural e o questionamento foi muito menor do que o de hoje. Só após muitos anos de existência é que caiu porque ficou bastante claro que os filhos de camponeses não eram beneficiados, fato que apenas reproduzia e reforçava a desigualdade social. As leis atuais, muito diferentes daquela, pretendem reduzir as fortes distorções que vêm sendo perpetuadas ao longo de séculos. Negros Escravos que foram libertos não tiveram acesso a educação pública, moradia e nem trabalho assalariado. Mesmo os brasileiros só ganharam status de cidadãos no governo de Getúlio Vargas, porque os países europeus proibiram a saída de migrantes devido à escassez de mão de obra produzida pelas duas Guerras Mundiais;
Diante de promessas de que é preciso esperar a melhoria da escola pública ─ isso é algo de cumprimento improvável ─, seguramente é melhor apostar em uma proposição concreta de implantação de uma política de cotas, para que daqui a dez anos não precisemos mais dela, e cobrar ao mesmo tempo uma política sistemática de melhoria real da escola pública. Sem isso, ano após ano, a desigualdade nos perseguirá. No início do governo Getúlio, em 1931, o Brasil aprovava a primeira lei de cotas de que se tem notícia nas Américas: a Lei da Nacionalização do Trabalho, ainda hoje presente na CLT, que determina que dois terços dos trabalhadores das empresas sejam nacionais;
Já na promulgação da Constituição de 1988, o país adotou cotas para portadores de deficiência no setor público e privado, cotas para mulheres nas candidaturas partidárias e instituiu uma modalidade de ação afirmativa em favor do consumidor: dada a presunção de que fornecedores e consumidores ocupam posições materialmente desiguais, estes últimos são beneficiados com a inversão do ônus da prova em seu favor, de modo que em certas hipóteses ao fornecedor cabe provar que ofereceu um produto em condições de ser consumido;
Em vista de tudo isso, estudiosos no assunto (sociólogos e antropólogos) afirmam que o Brasil poderia tranquilamente orgulhar-se de exibir cotas e outras políticas de ação afirmativa como um produto genuinamente nacional, e que não é mera casualidade o fato de jamais ter havido qualquer questionamento quanto à adoção de cotas para quaisquer outros segmentos, mas, no momento em que este mesmo princípio jurídico passa a ser invocado para favorecer a população negra, emerge uma oposição colérica e incapaz de enfrentar o contraditório, o debate público, aberto. Alguns anos depois da implantação de ações afirmativas para o acesso de jovens negros e brancos pobres ao ensino superior, os dados falam por si: os alunos cotistas apresentam o mesmo desempenho de seus colegas; as universidades ganharam em criatividade e desempenho e não há registro de incidente mais sério, a não ser velhas manifestações de intolerância que datam desde a chegada de Cabral;
Finalmente, os mesmos especialistas no assunto afirmam que ao julgar a constitucionalidade das ações afirmativas o Supremo Tribunal Federal (STF) teve em mãos oportunidade de reafirmar a esperança que os indivíduos devem ter em relação a um dos pilares do funcionamento da Justiça: a interpretação dos textos e dos fatos deve ter como base a norma jurídica, o direito, não podendo ser circunscrita aos valores e credos pessoais. Concluem dizendo que as normas são, presumivelmente, boas para todos; ao passo que valores quase sempre são bons apenas para nós. por Airton Leitão
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