Rana Obaid iniciou sua vida há menos de dois anos, em uma casa confortável cercada de rosas, filha de um merceeiro localmente famoso por seu rico iogurte caseiro.
Mas a guerra e o sítio trouxeram a fome tão rapidamente à cidade deles, perto de Damasco, que, quando ela morreu, em setembro, com 19 meses, seus braços e pernas eram tão finos quanto cabos de vassoura.
Em uma cidade próxima, uma mulher com um filho que sofre de insuficiência renal faz seus filhos se revezarem, comendo em dias alternados. Em uma aldeia nos arredores de Aleppo, no norte da Síria, as pessoas dizem que estão vivendo basicamente de verduras silvestres.
Trabalhadores de ajuda humanitária dizem que as crianças refugiadas sírias estão chegando ao norte do Líbano magras e subdesenvolvidas e que casos de desnutrição estão surgindo desde as áreas controladas pelos rebeldes no norte da Síria até os subúrbios controlados pelo governo ao sul de Damasco.
Por toda a Síria, um país que antes se orgulhava de fornecer comida a preço acessível ao seu povo, os esforços domésticos e internacionais para assegurar o sustento básico em meio ao caos da guerra parecem estar fracassando. Milhões estão passando fome em vários graus e há crescente evidência de que a desnutrição aguda está contribuindo para um número relativamente pequeno, mas crescente, de mortes, especialmente entre crianças pequenas, feridos e enfermos, disseram trabalhadores de ajuda humanitária e especialistas em nutrição.
Os especialistas alertam que, se a crise prosseguir inverno adentro, o número de mortes por fome e doença pode ultrapassar o de mortes por violência, que já matou mais de 100 mil pessoas. E, se a privação durar mais, uma geração de sírios corre o risco de ser subdesenvolvida.
"Eu não esperava ver isso na Síria", disse Annie Sparrow, professora-assistente e pediatra do Mount Sinai Hospital, em Nova York, que examinou as crianças refugiadas sírias no Líbano e ficou chocada ao encontrar muitas abaixo do peso para sua altura a idade.
"Não é exato dizer que parece a Somália, mas é uma situação crítica", ela disse. "Nós temos um país de renda média que está se transformando em algo mais parecido com a Somália."
Apesar de a guerra impedir um levantamento preciso do número de pessoas afetadas, cresce a evidência de fome. O governo está usando sítio e fome como tática de guerra em muitas áreas, segundo vários trabalhadores de ajuda humanitária e moradores, que dizem que os soldados nas barreiras confiscam alimentos, como pequenas sacolas de compras, tratando a alimentação de pessoas em áreas estratégicas controladas pelos rebeldes como sendo um crime. Os grupos rebeldes também estão bloqueando algumas áreas controladas pelo governo e intimidando os comboios de alimentos.
Mas, mesmo aqueles que vivem em áreas mais acessíveis, o que os trabalhadores de ajuda humanitária chamam de "insegurança alimentar" faz parte da nova realidade dos sírios. A inflação tornou os alimentos inacessíveis para muitos; a escassez de combustível e farinha fechou algumas padarias, enquanto ataques aéreos pelo governo visam outras; a produção agrícola despencou.
Apesar de o Programa Mundial de Alimentos dizer que está fornecendo comida suficiente para 3 milhões de sírios a cada mês, seus representantes dizem que só podem monitorar o que é entregue aos depósitos centrais em várias cidades, não quão ampla e justamente ela é distribuída a partir dali.
Um trabalhador de ajuda humanitária --que, em um sinal das dificuldades políticas para fornecer ajuda na Síria, pediu para que sua organização não fosse identificada-- disse ter se encontrado recentemente com profissionais de saúde sírios, que relataram dezenas de casos de aparente desnutrição em um subúrbio de Damasco controlado pelo governo. Ele suspeita que a situação pode ser ainda mais séria nas áreas controladas pelos rebeldes.
A falta de atendimento médico e de água limpa agrava o problema. Assim como o fato de os sírios terem pouca experiência em diagnosticar e tratar a desnutrição. Particularmente perturbador, dizem os trabalhadores de ajuda, são os relatos de mães que param de amamentar seus filhos, não cientes de que é a melhor forma, mesmo para uma mãe desnutrida, de manter suas crianças vivas.
Alguns grupos de ajuda estão tentando treinar médicos sírios no uso de ferramentas simples, como a medição da circunferência do braço para avaliação da desnutrição, já que um dado convincente de sua disseminação poderia provocar uma resposta internacional mais forte.
Trabalhadores de ajuda alertam contra alegações exageradas que possam desacreditar esses esforços. Alguns apoiadores do governo desprezaram as imagens de crianças esqueléticas nas áreas bloqueadas como propaganda, após vários milhares de civis terem sido evacuados de Moadhamiya, um subúrbio sitiado de Damasco, nas últimas semanas, com aparência de exaustos, traumatizados e magros, mas não prestes a morrer de fome.
Mas toda uma população não precisa parecer esquelética para as mortes por desnutrição serem reais, dizem os especialistas. Segundo eles, a desnutrição ataca os mais vulneráveis primeiro: bebês e crianças, aqueles que sofrem de diarreia, aqueles que precisam de alimentação extra para se recuperar de ferimentos ou doenças crônicas, e aqueles que não têm dinheiro nem contatos para obtenção dos alimentos de que precisam.
Em situações traumáticas, os casos podem passar despercebidos até estarem avançados, quando as vítimas atingem "um ponto sem retorno", disse Vincent Lacopino, um consultor médico da Médicos pelos Direitos Humanos. Incapazes de absorver calorias, muitos não se recuperam sem atendimento médico sofisticado, mesmo recebendo porções de alimentos de outros, disse ele.
Independentemente disso, segundo trabalhadores de ajuda humanitária, o fato de os bloqueios militares estarem impedindo pessoas com necessidades agudas de receber ajuda é por si só uma violação de direitos humanos. Não importa, eles dizem, se aqueles que estão sofrendo sejam tecnicamente as primeiras vítimas de uma fome incipiente, algo que nenhuma organização tem acesso ou dados para determinar, ou simplesmente pessoas que precisam de tratamento.
"Não deveria ser preciso que essas pessoas passassem fome para receber ajuda", disse outro trabalhador de ajuda humanitária. "A própria improbabilidade de uma fome na Síria irrita aqueles que sofrem com ela."
"É muito estranho saber que o alimento está a apenas cinco minutos de distância de você", disse Qusai Zakarya, um porta-voz do conselho rebelde em Moadhamiya, que disse que conversou recentemente por telefone com um amigo que estava comendo um cheeseburger em um bairro rico de Mezze, a poucos quilômetros de distância.
Agentes sírios do Crescente Vermelho árabe e moradores disseram que cartazes nas barreiras ao redor de Moadhamiya e outros subúrbios de Damasco dizem: "Ajoelhe-se ou morra de fome".
Um voluntário do Crescente Vermelho disse, em uma entrevista pelo Skype, que um soldado em uma barreira recentemente lhe disse que desertaria do exército se recebesse uma ordem para permitir o envio de comida para "aqueles que atiram em nós".
Mas os civis também sofrem. Sawsan, 33, uma viúva em Hajar al-Aswad, cidade controlada pelos rebeldes, disse pelo Skype que sua família, incluindo uma criança com insuficiência renal que não passa por diálise há seis meses, "passa por rodízio alimentar: todos não comem todo dia".
Umm Hamza, que fugiu de Moadhamiya com seus dois filhos e disse apenas seu apelido por temer represálias, descreveu comer apenas verduras após suas reservas de alimentos em conserva terem se esgotado e uma padaria controlada pelos rebeldes ter fechado por falta de combustível e farinha. "Nós passamos dias sem água e sem comida", disse perto de um abrigo do governo em Qudsaya, com seu rosto amarelado e olhar esgotado. Ela disse que conhecia muitas pessoas que perderam seus filhos por falta de alimentos e medicamentos.
Moadhamiya passou meses sem carne, ovos e leite e, em agosto, após o fim dos estoques de massas, restando apenas azeitonas, verduras e legumes, as pessoas começaram a morrer de fome, disse Zakarya. Ele forneceu relatórios médicos e vídeos.
Primeiro foi Ammar Arafa, 8, uma criança deficiente que vivia à base da fórmula PediaSure, que, como seus medicamentos, tornou-se impossível de ser obtida. Depois Ibrahim Khalil, 4, com seus membros apenas pele e osso. Imad Sawan, 5, foi ferido durante um bombardeio e não se recuperou direito de uma operação no intestino, um procedimento que exige nutrição extra para cura. Um destino semelhante recaiu sobre Mona Ragab, 30.
A família de Rana Obaid, a filha do merceeiro, não era rica, mas vivia decentemente, com uma moto e dinheiro suficiente para doar aos pobres.
Nascida pequena e fraca, Rana acabou se desenvolvendo normalmente, mesmo após a casa de sua família ter sido bombardeada e eles se mudarem para o apartamento abandonado de um parente.
Mas, após meses sem proteína ou fórmula, Rana ficou magra e doente e, posteriormente, incapaz de engolir as azeitonas, o principal alimento de sua família.
Em setembro, seus braços e pernas eram pele e osso. Ela foi filmada em uma maca hospitalar improvisada, com seus olhos brilhantes olhando fixa e intensamente para a câmera enquanto o médico apalpava gentilmente seu estômago inchado, suas costelas proeminentes, a gengiva que sangrava. Uma filmagem posterior mostrava seu cadáver.
"Minha filha querida era como um fantasma. Eu me sentia impotente", disse recentemente Abu Bilal, que ainda tem um filho de 7 anos, para Zakarya. "Mas me sinto aliviado agora. Eu sei que ela está com Deus e em paz. Não há fome lá. Não há frio, nem bombardeio." Fonte: Com informações da UOL
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