Yan Boechat e Karla Calderon, Época
“Era bem cedo e estávamos tomando café da manhã quando ele engasgou. Tossiu um pouco e começou a vomitar. Primeiro vieram pedaços de pão; depois, o sangue. Bastante sangue. Desde que não conseguimos mais comprar o remédio de que ele precisa tem sido assim. As varizes que ele tem no esôfago não suportam a pressão do sangue, se rompem e ele vomita sangue. Eu não consigo encontrar esse propranolol desde o ano passado. De vez em quando, alguém nos dá uma cartela e ele toma, mas é raro. Os médicos já me avisaram que, se eu não conseguir os remédios, ele pode morrer. A veia pode se romper e ele ter uma hemorragia. Pode morrer dormindo. Eu sei que ele tem um pé aqui na Terra e o outro no Céu. Isso nem é o pior. O pior é quando ele tem dores e chora. Dou remédio para febre, que é o único que tenho. Aí torço para ele dormir, para cansar da dor e dormir. Passo a noite fazendo carinho na barriga dele, no peito, é tudo que eu posso fazer para diminuir a dor. Algumas vezes funciona. Em outras, não.”
Ninoska Torrealba, de 50 anos, acompanha seu neto Alenxon Gomes, de 5, em sua agonia no Hospital de Niños J.M. de los Ríos, em Caracas. Pernas finas, cabelo curto, ele deveria estar brincando, não naquela cama. Suas varizes no esôfago poderiam ser curadas com uma cirurgia. Mas o hospital não tem o kit básico para a operação. O rompimento dos vasos poderia ser tratado com remédios, mas eles não estão disponíveis. Ao menos as dores poderiam ser aliviadas com analgésicos; mas estes também não existem nas farmácias. Alenxon sofre de algo plenamente curável, como sofria um doente há 100 anos, apenas porque vive na Venezuela.
Os amplos corredores iluminados pela luz tropical que atravessa as grandes janelas da ala de infectologia do Hospital Universitário de Caracas dão um ar de grandiosidade decadente a esse conjunto de três prédios dos anos 1950, símbolo da arquitetura modernista da Bauhaus, considerado Patrimônio da Humanidade pela Unesco. Há um bosque ao redor. O piso vermelho de cimento queimado reluz de tão limpo, enquanto armários, cadeiras e mesas de metal pintados de bege, já enferrujados, fazem tudo ali parecer velho, antigo. Nos cantos, pacientes aguardam ser atendidos. Muitos estão debilitados. Outros trazem sacolas com comida, água ou medicamentos de que seus familiares internados vão precisar. São observados por idosos, homens e mulheres, metidos em fardas militares dois ou três números maiores. Eles integram os chamados Milicianos do Povo, responsáveis por vigiar quem entra e sai e se alguém faz fotos. Fazem parte da rígida segurança instalada nos hospitais venezuelanos desde que os problemas crônicos na saúde pública ganharam contornos de crise humanitária.
Nos últimos meses, diferentes países, entre eles o Brasil, e organizações ofereceram ajuda à Venezuela, que vive à beira de um colapso sem precedentes em seu sistema de saúde. O governo, no entanto, recusa todas as ofertas. A exemplo do que faz a Coreia do Norte, a gestão de Nicolás Maduro afirma que a situação está sob controle. “É difícil imaginar por que o governo não aceita abrir um corredor humanitário. É uma questão urgente, as pessoas estão morrendo por questões meramente ideológicas, estúpidas”, diz o cirurgião José Félix Olleta, ex-ministro da Saúde (1997-1999), com atuação nos partidos de oposição e na sociedade Venezuelana de Saúde Pública. O colapso é a face mais dramática da tragédia econômica do país dono da maior reserva de petróleo do mundo. A escassez quase absoluta de medicamentos e insumos hospitalares se explica pela falta de dólares. “Com nossas reservas tão baixas – US$ 9,8 bilhões –, a tendência é esse problema se agravar ainda mais porque simplesmente não há dinheiro para comprar o que precisamos”, diz Olleta, que calcula que o governo venezuelano precisaria importar cerca de US$ 6 bilhões em remédios e insumos.
Sentada em um cubículo onde não cabem mais do que três pessoas, a infectologista Maria Eugenia Landaeta, chefe do departamento responsável por atender os pacientes com HIV, sabe que tem a oferecer a seus pacientes quase nada além de corredores limpos e camas hospitalares. “Nem água potável temos mais”, diz ela, num sorriso contido, quase sem graça, quase sem esperanças. “Todos os meus pacientes internados aqui estão condenados à morte, isso não vai demorar muito. Na verdade, estão morrendo, sempre tem alguém morrendo, o tempo todo.” Clara, de cabelos curtos cortados ao estilo Chanel, Landaeta vive resignada diante da impossibilidade de oferecer um tratamento que possa salvar a vida dos que buscam ajuda no Universitário, antes considerado um centro de excelência em tratamentos de alta complexidade. Há 20 anos no hospital, com um salário de 500 mil bolívares (equivalentes a US$ 20), ela chefia uma equipe de cinco médicos – outros sete abandonaram o emprego e deixaram o país nos últimos 18 meses. “Nós os deixamos aqui para dar algum conforto, para que morram em melhores condições do que em casa, mas nem mesmo analgésicos temos mais e nossa morfina está acabando”, conta uma de suas comandadas, que, por medo de represálias do governo, pede para não ser identificada.
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