No final de 2013, quando a Polícia Federal desencadeou uma operação para prender os maiores doleiros do Brasil, os telefones de Carlos Habib Chater, de Brasília, eram monitorados. A PF sabia que ele era um dos grandes doleiros do País. Chater disfarçava suas operações. Sua casa de câmbio funcionava dentro de um posto de gasolina, onde havia um setor de lavagem rápida de carros. Por isso, virou Operação Lava Jato. Ele pagava propinas a políticos de Brasília, sempre a mando de um doleiro de São Paulo, com quem falava diariamente ao celular, mas não se identificava. Era chamado pelo apelido de “Primo”, o maior doleiro brasileiro. Mas quem seria “Primo”? As investigações se arrastavam. Até que um dia Chater chamou “Primo” de “Beto”. O delegado Márcio Anselmo, que comandava a Lava Jato em Curitiba, pediu para ouvir as escutas e reconheceu a voz de “Beto”. Era Alberto Youssef.
Foi a senha para que o juiz Sergio Moro determinasse a prisão de Youssef e Chater, além de Nelma Kodama e Raul Srour que mantinham negócios com “Primo”. O uso de codinomes é apenas um aspecto do cotidiano dos doleiros, que se transformaram numa espécie de figuras ocultas de nove em cada dez escândalos da história recente do País. Um mergulho no mundo particular desses operadores revela que eles são pessoas meticulosas, obedecem a uma hierarquia militar, fazem parte de uma engrenagem capaz de movimentar R$ 32 milhões por dia e são regidos por um sistema nada muito complexo criado para atender desde políticos e empresários até cidadãos comuns. Mas os doleiros só progridem porque existem corruptos que, para fugir das raias da Justiça, precisam camuflar dinheiro.
Se um político recebe, por exemplo, propina de R$ 10 milhões de uma empreiteira por ter facilitado o negócio da empresa numa licitação, ele não tem como justificar esse ganho milionário. Ele não pode depositar o dinheiro em sua conta porque negócios acima de R$ 100 mil são rastreados pelo Banco Central e o cidadão responderia penalmente por não conseguir justificar a origem dos recursos. Não pode mandar legalmente esse dinheiro para o exterior porque o Banco Central também informaria à Receita. Guardar o dinheiro debaixo do colchão nem pensar. É aí que ele procura um doleiro estabelecido numa casa de câmbio ou mesmo numa corretora de valores.
O doleiro abre para o cidadão uma conta numerada em algum paraíso fiscal, em geral, Panamá ou Uruguai. Antes a operação era realizada na Suíça, nos Estados Unidos ou em Mônaco. Mas esses países agora exigem que o dinheiro lá depositado tenha origem justificada. Usualmente, essa conta é criada em nome de uma offshore (empresa para comércio internacional), sem que os proprietários sejam identificados. Ao final, o cidadão entrega os R$ 10 milhões ao doleiro e o valor é transformado em dólares. O dinheiro é depositado, então, na filial da corretora no exterior, que depois repassa os valores para a offshore ou para a conta numerada do corrupto. A corretora ou casa de câmbio sempre fica com uma parte do dinheiro. Normalmente, as corretoras cobram 2% do volume total, mas pode chegar a 10%.
Youssef, por exemplo, começou a lavar o dinheiro de caixa dois das empreiteiras dado aos políticos por volta de 2007, no governo Lula. E foi assim até 2014, ao ser preso. Ele pegava o dinheiro das construtoras e emitia notas fiscais de empresas de fachada que comandava. Os serviços para as empresas nunca foram prestados. Mas isso gerava fluxo de caixa. Ele mandava seus funcionários sacarem dinheiro vivo nos caixas dos bancos e pagava em reais aos que assim desejassem. Ou então os convertia em dólares em suas casas de câmbio. Malas e malas de dinheiro foram despachadas para vários políticos Brasil a fora. Para os que preferiam receber em dólares no Brasil ou no exterior, Youssef fazia o câmbio, usando notas frias de importações fraudulentas da Lobogen, uma empresa de medicamentos de sua propriedade. Ele fazia “compras” de milhares de dólares em produtos na China, por exemplo, com guias aprovadas no BC. Com as compras fajutas, ele mandava os dólares para offshores ou empresas de fachada no exterior. O doleiro fez inúmeros pagamentos a políticos fora do País, com depósitos em contas de offshores abertas no Uruguai e Panamá. Abastecia também contas de empreiteiras e de diretores da Petrobras na Suíça.
Ricos por receberem generosas comissões das empreiteiras corruptoras e políticos corrompidos, os doleiros desfrutam de uma vida confortável, freqüentam restaurantes e hotéis caros, haras, jóqueis clubes e possuem carros luxuosos. Youssef mora num apartamento na Vila Nova Conceição, a área mais cara de São Paulo, cujo prédio tem até uma raia olímpica para natação. Namorou modelos famosas. A última delas, Taiana Camargo, de 30 anos, foi inclusive capa da Playboy em setembro de 2015, quando ele já estava preso. Ela foi fotografada coberta por dólares.
O doleiro de Brasília
Ostentação nunca foi a praia de Youssef. O mesmo não se pode dizer de Fayed Traboulsi, doleiro famoso por trabalhar para políticos do Planalto Central e do Congresso Nacional. Fayed atua no ramo desde os anos 90. Ele tinha uma agência de turismo no térreo do Hotel Manhattan Plazza, mas foi preso no ano passado, e agora funciona em local desconhecido. Conhecido por atuar no submundo da política, Fayed Traboulsi leva a vida entre o luxo e as grades. Dono de um patrimônio milionário, costuma desfilar pelas avenidas da capital federal a bordo de Ferraris. Em suas viagens, não dispensa um jato particular: o Phenom 100, fabricado pela Embraer entre 2010 e 2011, avaliado em US$ 4 milhões.
Apesar do alto poder aquisitivo e do trânsito livre com as autoridades brasilienses, é hóspede frequente em carceragens policiais. A última ocorreu no ano passado. Ele ficou detido na Polícia Federal durante quase um mês por envolvimento com fraude em fundos de previdência. Foi justamente em uma operação policial organizada para combater o crime de lavagem de dinheiro que a realidade colorida de luxo de Fayed foi revelada. Em ação ocorrida em 2013, policiais federais apreenderam um iate do doleiro. A embarcação foi adquirida em euros (1,6 milhão), o equivalente a R$ 6 milhões. Após escarafunchar a movimentação bancária e os bens do doleiro, a polícia também descobriu que ele possuía uma verdadeira frota de carros, além das duas reluzentes Ferrari – avaliadas em R$ 3 milhões. Ao todo, 20 veículos seriam de sua propriedade. O doleiro abriu também uma casa de pôquer no Setor de Clubes Sul de Brasília, onde a aposta inicial é R$ 2 mil. Além de bebida, o lugar conta com vasto cardápio de garotas de programa.
Apesar da fama, Fayed não opera sozinho em Brasilia. Com a ajuda de um conhecido contrabandista da capital federal, a reportagem de ISTOÉ em Brasília mapeou pontos onde a atividade ilegal do comércio de dólares é feita diariamente e quase sem o estorvo das autoridades. A novidade é que os doleiros têm procurado fontes da moeda estrangeira em lugares inusitados, como as embaixadas. “Eles compram o salário dos funcionários, que é pago em dólar, e repassam para a clientela”, afirma. Um dos doleiros que atuam nesse nicho é Danilo Flores. Ele herdou a vocação do irmão Marcos, que saiu do ramo. Danilo tem escritório no edifício Assis Chateaubriand, que fica na Avenida W3 Sul, local distante cinco quilômetros do Palácio do Planalto e do Congresso.
Angelina Jolie
Nas mensagens trocadas entre os doleiros, apelidos e gírias são usadas para que ninguém seja identificado. A doleira Nelma Kodama assinava mensagens como Angelina Jolie, Greta Garbo ou Cameron Diaz. Nelma foi presa na Lava Jato tentando sair do País com 200 mil euros escondidos na calcinha. Na busca e apreensão em sua casa, a PF apreendeu quadros caríssimos e jóias valiosas. Os doleiros que comandavam o crime, Youssef, Nelma, Raul Srour e Charter, já foram postos em liberdade recentemente.
Depois que os quatro grandes doleiros foram presos, o mercado de câmbio paralelo mudou da água para o vinho. Pulverizou-se e passou a ser feito por doleiros menores, abaixo dos “generais” dos tempos de Youssef. Segundo um empresário paulista que já recorreu a esse mercado, os doleiros operavam como uma instituição militar: os maiores são “generais” e os menores são “coronéis”, “tenentes”, “sargentos”, assim por diante, dependendo do tamanho das operações realizadas.
Se for preso, um doleiro pode ser condenado a 12 anos de cadeia por evasão de divisas, organização criminosa e lavagem de dinheiro, pena maior até do que a aplicada a um traficante internacional. As sanções mais duras, no entanto, não os desestimularam. Afinal, o volume de dinheiro movimentado é muito atrativo. Em São Paulo, alguns doleiros menores continuam em ação, no vácuo da prisão de Youssef, como Marco Antonio Cursini e Sandor Paes de Figueiredo, dono da Santur, uma agência de viagens. Eles já operavam na década passada, mas continuam na ativa. No Rio, permanecem na praça também os irmãos Marcelo e Renato Hassan Chebar, os doleiros do ex-governador Sergio Cabral. Os irmãos Chebar disseram na PF, em delação premiada, que movimentaram de 2002 a 2012, mais de US$ 100 milhões (R$ 320 milhões) em nome de Cabral. Os Chebar tinham de esconder tanto dinheiro no exterior, que já não estavam dando conta. Precisaram “terceirizar” os serviços ao doleiro uruguaio Oscar Algorta Rachetti. Outro doleiro importante do Rio e São Paulo, Dario Messer, vive hoje no Paraguai, mas ainda negocia para brasileiros. “Ele virou sócio de importantes autoridades paraguaias”, diz um ex-doleiro paulista.
Recentemente, segundo fontes da PF, Raul Srour, um “general” na hierarquia dos doleiros, voltou a atuar a todo vapor em operações em São Paulo. Quem ascendeu de posto, alçada de “sargento” a “coronel”, foi Olga Youssef, irmã de Alberto Youssef. Ela rompeu com o irmão e criou um esquema independente que floresce também na capital paulista. Youssef teve de submergir. Hoje, por decisão judicial, só pode deixar o apartamento para fazer ginástica no andar térreo e qualquer movimentação precisa ser autorizada pelo juiz Sergio Moro. Ossos de um ofício que entrou definitivamente na alça de mira dos investigadores.
(Colaborou Ary Filgueira)
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