Veja
A perspectiva de perda de uma gorda fatia da receita dos royalties antecipa, para municípios próximos da Bacia de Campos e o estado do Rio de Janeiro, a maldição do petróleo. Como os repasses dependem de um recurso natural finito, era sabido que um dia esse dinheiro farto sumiria – e por isso era necessário criar alternativas de receita e evitar a dependência extrema dos royalties e participações especiais. A rigor, esses recursos têm por função compensar danos ambientais, sociais e a sobrecarga de infraestrutura que a pesada indústria do petróleo exerce sobre as cidades. Agora, que a mudança na lei pode redistribuir esses recursos, vêm à tona as distorções, como gordas fatias de dinheiro destinadas a municípios não necessariamente sacrificados pela atividade petroleira. E a constatação é de que em duas décadas os royalties serviram mais aos interesses dos governantes que aos da população, pois não houve a transformação dessa riqueza em desenvolvimento econômico de fato.
O apelo mais exasperado do governador do Rio, Sérgio Cabral, ainda na tentativa de evocar um improvável veto da presidente Dilma Rousseff ao projeto que redistribui os royalties, é de que sem esse dinheiro o Rio não tem como fazer a Olimpíada de 2016 e a Copa do Mundo de 2014. É, certamente, um exagero. Mas também é inegável que a perda de 1,6 bilhão só em 2013 impõe ao Rio uma ginástica para manter o ritmo de investimento, num estado em expansão. A perda, segundo a Secretaria Estadual de Fazenda, corresponde a 12% das receitas do tesouro fluminense.
A situação é mais grave nos municípios. Em média, cerca de 40% da arrecadação das cidades da Organização dos Municípios Produtores de Petróleo do Rio (Ompetro) vêm de royalties e participações especiais. Campos dos Goytacazes, Macaé e Rio das Ostras perderiam juntas, em 2013, 930 milhões de reais. Só São João da Barra, cujas receitas de royalties e participações especiais beiram os 70% do Orçamento, deixaria de receber 100 milhões.
Para o secretário estadual de Desenvolvimento Econômico, Júlio Bueno, é natural que a economia na Bacia de Campos seja baseada no petróleo, o que, para ele, não significa dizer que as cidades estejam estagnadas. “Não tem saída. Se tirar esse recurso é a morte dessas cidades, a inanição. O petróleo é bom, todo mundo queria ter, mas também traz problemas, como uma pressão social enorme e a necessidade de ampliar redes de saúde e educação e infraestrutura”, diz Bueno.
O exemplo extremo do que esse dinheiro é capaz de produzir – e do quanto essa indústria é impactante – está em Macaé, a “capital do petróleo”, que foi da condição de vila de pescadores à de eldorado brasileiro, tamanha a corrida de empresas e famílias deflagrada com as atividades da Petrobras e demais indústrias do setor.
A transformação de Macaé foi brutal. De 75.000 habitantes em 1980, a cidade chegou a 156.000 em 2005. Atualmente, a população é de 206.728. O crescimento rápido criou favelas, fez explodir a criminalidade – entre 1999 e 2002 os homicídios aumentaram mais de 80% – e trouxe problemas de cidade grande, como trânsito caótico, poluição e graves problemas de saneamento. Como toda essa gente criou também um mercado interno, alimentado principalmente pelo comércio e o turismo de negócios, Macaé hoje seria uma das menos prejudicadas com a perda dos royalties. O prefeito da cidade, Riverton Mussi (PMDB), também presidente da Ompetro, lamenta a perda, mas rechaça a ideia de que isso seria uma catástrofe. “Não somos dependentes dos royalties. Hoje, 40% do nosso Orçamento ainda vêm desses recursos. Mas já estivemos numa situação pior, com cerca de 70%, em 2005. Fizemos uma reforma tributária, implantamos a nota fiscal eletrônica, um novo código de obras do município e promovemos mudanças no IPTU”, diz o prefeito.
Para Mussi, o projeto de lei que muda os critérios de distribuição dos royalties provocaria “perda de qualidade dos serviços prestados dentro do município”. A perda de que fala o prefeito de Macaé é proporcional à falta de alternativas ao dinheiro público. Macaé e seu comércio pujante são uma exceção. “Vai acabar o dinheiro para as prefeituras fazerem as coisas mais elementares. É uma perda brutal. Essas cidades vão voltar a ter arrecadação de 20 anos atrás. São, geralmente, municípios pobres que, com exceção talvez de Macaé, não diversificaram o sistema econômico. Como vão gerar receita? Vai ser um golpe”, alerta o professor de economia Ubiratan Jorge Iorio, da Uerj.
“A região da Bacia de Campos não tinha nada antes dos royalties. Macaé parecia uma cidade do interior. Rio das Ostras era apenas um lugar de casas de veraneio. É certo que pode ter havido mau uso do dinheiro dos royalties, mas hoje sentimos o cheiro do progresso por lá”, afirma Iorio.
Família Garotinho – Campos dos Goytacazes tem 60% de seu Orçamento alimentado por royalties e participações especiais. Segundo Marcelo Neves, secretário de Desenvolvimento e Petróleo do município e também secretário executivo da Ompetro, o percentual de receita vinda do petróleo, em 2009, chegava a 70%. Segundo levantamento do gabinete do deputado federal Otávio Leite, do PSDB-RJ, Campos perderia 585 milhões de reais em 2013, de um total de arrecadação que beira os dois bilhões – Campos seria a cidade do Rio com maior perda em números absolutos. Se o projeto for sancionado, o primeiro corte teria de ser nos projetos sociais. A prefeita Rosinha veria minguar o programa Passagem Social, que fixa tarifas de ônibus em 1 real, e o Morar Feliz, que reassenta famílias de áreas de risco.
“Também ficariam comprometidas a saúde, porque é a prefeitura que faz os repasses para os hospitais públicos, e várias obras de infraestrutura, como pavimentação, tratamento de esgoto, construção de escolas e creches. As licitações previstas para o próximo governo da Rosinha para empreender novas obras estão congeladas, aguardando a decisão de Dilma”, afirma Neves.
Infraestrutura – A dependência do petróleo parece ser, nessas cidades, algo inevitável. E mesmo as alternativas econômicas têm alguma relação com a indústria que movimenta plataformas, navios e equipamentos de exploração em alto-mar. Uma das apostas para reduzir a dependência dos royalties na região é a instalação de um novo porto na divisa de Campos com Quissamã, também beneficiada pelo petróleo. A dragagem do canal começa em 2013 e a expectativa é que o empreendimento funcione em 2015. Do lado da pequena Quissamã, duas empresas estão construindo suas instalações. “Investimos em desenvolvimento econômico para quebrar a dependência. Criamos zonas especiais de negócios para atrair empresas. Há também o projeto do porto para os estaleiros virem para cá. Sabemos que a receita do petróleo é finita. No nosso planejamento, cuidamos de atrair novas empresas. A nossa dependência diminuiu um pouco. Ela chegava a 70% até 2008. Hoje é de cerca de 40%”, afirma o prefeito de Quissamã, Armando Carneiro da Silva. A cidade terá uma nova usina de etanol, ajudada pelo projeto do governo do estado, que reduz de 24% para 2% o ICMS sobre o combustível da cana.
Quissamã é um caso particular. A cidade tem apenas 20 mil habitantes e, até o fim da década de 80 era um distrito pobre de Macaé. Assim que se emancipou, o pequeno município passou a viver da receita de uma usina de cana-de-açúcar, que fechou em 2002. A partir daí, foram os royalties, cada vez mais volumosos, o combustível da máquina pública. “Os royalties nos fizeram construir uma rede de saúde e educação. O hospital da cidade é mantido por essa verba, assim como parte das nossas 17 escolas municipais. Teríamos que cortar alguns investimentos, caso Dilma sancione o projeto. Um deles seriam as bolsas de estudos nas universidades que damos aos moradores daqui”, afirma o prefeito.
Quissamã é o caso de cidade que se beneficia pela sorte de estar em uma posição no continente que garante a sua população uma fatia dos royalties. A cidade, até hoje, não tem porto, não recebe grandes empresas, não sofre o impacto direto da exploração do petróleo.
Para essas cidades, a esperança no momento se apoia em um veto da presidente Dilma ou em uma vitória dos estados do Rio e do Espírito Santo no caso de uma ação no Supremo Tribunal Federal. Governadores e prefeitos estão cientes de que vão perder recursos, mas querem evitar a facada mais doída em seus Orçamentos: a perda do privilégio na distribuição dos royalties de áreas já licitadas. Apelam, nesse sentido, ao pacto federativo e à segurança jurídica necessária ao bom ambiente de negócios com multinacionais do setor.
Caso as cidades e estados produtores sucumbam em seus pleitos, estará confirmada o que, no mundo inteiro, é chamado de “maldição”: o farto dinheiro do petróleo desaparece de repente e, quando se vai, causa estrago proporcional à prosperidade que dele se esperava.
Na história da região de Macaé, é famosa outra maldição – relacionada à descoberta do petróleo. Em 1855, foi executado em praça pública, na região onde hoje existe a cidade, o fazendeiro Manoel da Motta Coqueiro. Foi o último condenado à morte no Brasil. A acusação: matar oito colonos de uma família nos limites de sua propriedade rural. Coqueiro jurava inocência, e, no momento de seu enforcamento, rogou uma praga. Macaé viveria 100 anos de atraso. Pouco depois da execução, descobriu-se que não era ele o assassino, e a investigação tinha tons de conspiração orquestrada por adversários políticos. Ninguém, obviamente, deu bola à maldição daquele que ficou conhecido como “Fera de Macabu”, numa referência à região onde ocorreu o massacre. Até que, exato um século depois, em 1955, na pequena e pobre Macaé, desembarcou a Petrobras, para as pesquisas que iniciaram o ciclo da bilionária exploração do petróleo. A injustiça com o fazendeiro levou o imperador Pedro II a abolir a pena capital no Brasil.
Nenhum comentário:
Postar um comentário