Apesar de ter sido explorado por parte da imprensa como um desses folhetins bestas de celebridades – separação, sumiço, falência –, o drama que cercou os últimos anos da vida de Belchior pareceu se revestir de uma estranha seriedade. Quase uma dignidade emanando da figura do cantor errante em meio ao sensacionalismo.
A sua morte, como uma espécie de prolongamento disso, foi apresentada ora como parte de sua obra – como se o colapso de sua carreira e negócios tivesse algo de existencialmente heroico e/ou de afirmação política –, ora como uma espécie de corolário inevitável de sua poesia angustiada.
A voz destoante foi a das feministas, que lembraram que parte das dívidas deixadas para trás era com pensões alimentícias, de filhos dentro e fora do casamento, para além obviamente da ausência paterna em si mesma. Atrevo-me a arriscar dizer que a resposta tem a ver com tudo isso – sem que nenhuma suposição mate a charada inteira.
Nenhuma das hipóteses, nem a do Belchior voluntarioso, nem a do Belchior exausto, nem a do Belchior irresponsável parece dar conta do que soubemos, ainda que fragmentos disso tudo estejam presentes (e de alguma coisa mais, ou seria alguma coisa menos). O fato é que, armado o escândalo (que recolocou a figura em pauta, redespertando a curiosidade sobre sua obra – e essa é cheia de qualidades), um mero aceno de Belchior resolveria os problemas – pelo menos os financeiros.
Faltou: a) um violão; b) vontade. Considerando que um dos combustíveis do artista era o romantismo – e aí eu uso o termo no sentido estrito, estilístico, não no piegas –, e de que ele era um homem de habilidades de palco, mesmo sozinho, ou com mínimo acompanhamento, uma pequena faísca de entusiasmo bastaria para uma volta catártica. Os produtores que o procuraram – e mesmo os publicitários a serviço de uma marca de automóveis, que poderiam ter-lhe pago uma soma expressiva para dizer algo tipo “com esse carro, até eu volto” – esbarraram em uma negativa. Com a proposta publicitária ele teria ficado inclusive ofendido.
Que “faltou um violão” não é força de expressão. De seu último refúgio, em Santa Cruz do Sul, RS, onde ele conseguiu finalmente passar longos períodos incógnito nos últimos dois anos, sua amiga Malu Muller conta candidamente que “emprestou um violão que tinha em casa” para ele tocar – vamos supor que poderia ser inclusive um instrumento ruim, ou mediano. Mais duas infos interessantes: de que ele estaria disposto a voltar (mas nunca aceitou as abordagens dos produtores), e que estava tranquilo e cordial (o que difere das ocasiões em que foi localizado mais tenso, ou quase paranoico). Na foto com Malu, e com sua última companheira, Edna Prometheu, de fato estavam de boa cara.
O que aconteceu, e que quase todos os leitores já devem saber, é que, ao não recorrer dos processos que começou a perder, desde 2008 (sua pouca disposição com a carreira vinha de um ou dois anos antes), Belchior meteu-se em uma armadilha. Com as contas bloqueadas a pedido de credores (esposa; mãe de uma de suas duas filhas com fãs; seu secretário, a quem largou no escritório sem maiores instruções), além de não ganhar mais nada ainda deixou de ter acesso aos pagamentos de direitos autorais (pouco mais de R$ 70 mil por ano, ou uns R$ 6 mil por mês em média, em valores de 2013 – enquanto se apresentava, obviamente realizava mais que isso; só a pensão principal que pagava era então de R$ 7 mil).
Nesta matéria há uma boa recapitulação da história, até aquele ano. Também surge a figura de Edna, que ele conheceu em 2005. Numa versão simplória, foi Edna que bagunçou a cabeça de Belchior – teoria que um amigo do casal, o também pintor Aguilar (voltaremos a ele) se apressou em desmentir: “Edna não conseguiria sozinha virar a cabeça de alguém inteligente como Belchior. São dois sonhadores, juntaram suas utopias. Deixaram de acreditar neste mundo materialista, objetivo e mesquinho e partiram para um caminho de desapego”, diz ele. O que Aguilar diz faz algum sentido, mas a trajetória deles não seria exatamente búdica.
Na mesma matéria, é narrado um período bem turbulento, entre hospedagens em casas de quase estranhos, em uma instituição de caridade, e calotes em hotéis pelo Brasil, e um no Uruguai. O clima era de perseguição: no começo de 2013, “Edna e Belchior procuraram a Defensoria Pública em Porto Alegre. A história ganhou ingredientes ainda mais estranhos. Os dois alegavam que o bloqueio das contas e os mandados de prisão impediam que ele trabalhasse (…). Mas o comportamento do casal era confuso. Edna falava desbragadamente, enquanto Belchior ficava quase sempre calado. ‘(…) Fizemos um pedido judicial para a suspensão da execução, até que ele conseguisse se restabelecer. Nesse meio-tempo, Belchior sumiu’”, contou a defensora pública Luciana Kern.
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