O “totalitarismo religioso”, para usar as palavras do escritor Salman Rusdhie, não pode achar que o mundo está se curvando a ele
Sandro Vaia
“Estamos em guerra. Até o pescoço. O Exército Islâmico é o novo nazismo. Quer dominar o mundo, como quando eu era pequeno e vivia sob bombardeio”.
Umberto Eco, autor da frase, é escritor (“O nome da Rosa”) e semiólogo- aquele que estuda a palavra e suas significações.
Ele não se preocupou em bordar ou suavizar as palavras com que definiu o massacre de Paris, aquele em que dois psicopatas invadiram a redação do Charlie Hebdo, um jornal satírico, e mataram doze pessoas-entre as quais quatro cartunistas tidos como geniais- a rajadas de suas kalishnikovs e aos gritos de que o profeta Maomé estava vingado.
Milhares de pessoas foram às ruas, em Paris e em outras cidades europeias, em solidariedade aos jornalistas mortos e empunhando cartazes que diziam “Je suis Charlie” – todo mundo virou Charlie, e as praças se encheram em defesa da liberdade-porque é disso que se trata.
Mas atrás da poça de sangue que restou da reunião de pauta do Charlie Hebdo, os antropófagos da democracia começaram a roer os ossos dos mortos e a relativizar o ataque dos fanáticos islâmicos e a colocar, como colchão entre a civilização e a barbárie, as suas ponderações recheadas da habitual vigarice ideológica.
“Sou contra ataques terroristas, mas…”.
Mas o que? Ao o jornal era muito agressivo e não respeitava a fé islâmica; ah, o ataque vai aumentar a escalada xenofóbica na Europa e vai fortalecer a extrema direita; ah, a liberdade de imprensa tem que ter limites; ah, um jornal satírico não pode ser desrespeitoso com as crenças do outro… e muitos outros mas.
Eles matam, mas a frágil consciência do Ocidente a respeito da riqueza de seus próprios valores civilizatórios, como a democracia, a liberdade e o pluralismo, deixa espaço para que aflore a dúvida: quem sabe a culpa não seja nossa? Ampliar esse espaço de dúvida e plantar o medo dentro das fissuras que eles abrem a golpes de kalishnikov, esse é o objetivo tático dos terroristas.
A melhor resposta é ir à rua e proclamar que a estratégia de cercear as liberdades através do medo não funciona. O “totalitarismo religioso”, para usar as palavras do escritor Salman Rusdhie, que já foi vítima de uma fatwa que o condenou à morte, não pode achar que o mundo está se curvando a ele. Se ele perceber que a tática do medo é eficaz, continuará avançando e destruindo as liberdades que encontrar pela frente. Pelas frestas da covardia, a intolerância se instala, se impõe e domina.
É muito simbólico que o ataque tenha sido contra a redação de um jornal, porque é através da liberdade de imprensa que a liberdade de expressão se torna um valor irremovível e inegociável de uma determinada forma de ver e viver o mundo. Mais simbólico ainda que tenha sido contra um jornal humorístico, satírico, desbocado, anárquico, insolente e desrespeitoso contra todas as convenções políticas, sociais e religiosas, mesmo as mais caras às tradições francesas.
Como disse Daniel Cohn Bendit, o revolucionário de 68, o Charlie exagerava nas piadas, sim, mas “essa era a concepção deles, de um jornal satírico onde o exagero era justamente parte da concepção; se você diz que eles exageraram, diz que eles não têm razão de ser. Uma sociedade livre é justamente aquela que suporta o excesso”.
A guerra de Umberto Eco, aquela em que estamos metidos até o pescoço, é a guerra pela liberdade.
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