Um domingo sombrio amanheceu no céu brasileiro. Centenas de jovens gaúchos perderam a vida no trágico incêndio da boate Kiss, na cidade de Santa Maria (RS), deixando outras centenas de feridos e um país inteiro consternado. A presidente Dilma Rousseff deixou a 1ª Cúpula da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) e da União Europeia e, emocionada, chorou diante das câmeras. As autoridades brasileiras lamentaram. Nas redes sociais e em todos os veículos de comunicação, cidadãos e profissionais se mobilizaram. Um dia dramático.
A tragédia imediatamente revelou as mazelas: a boate estava com os alvarás de funcionamento vencidos; a banda utilizou rojões em ambiente fechado e altamente inflamável; alguns extintores de incêndio não funcionaram, assim como nenhum sinal ou alarme soou; as Unidades de Saúde não deram conta dos atendimentos emergenciais a tantas vítimas; e profissionais desqualificados bloquearam a saída dos jovens sem o pagamento das comandas de consumo, condenando-os à morte. Foi, literalmente e como reza o dito popular, o diabo na casa da farinha.
Ora, convenhamos: alguém acredita que os empresários, donos de casas noturnas, cogitam a possibilidade de uma catástrofe se abater sobre seus estabelecimentos, levando a óbito seus clientes? É óbvio que não. No entanto, esses mesmos empresários confiam piamente na absoluta ineficiência do Estado, na leniência das autoridades instituídas, na ineficácia dos mecanismos de controle e fiscalização brasileiros. Muito além da ladroagem generalizada (e talvez seja seu resultado), a falência do Brasil enquanto nação dá-se pela incapacidade de ser proativo. Acata-se calmamente a reatividade dos Poderes. Não agem. Só reagem. Às vezes nem isso!
São sucessivos desastres e, há décadas, caímos no mesmo buraco de gerúndios infames: “vamos estar investigando”; “estaremos apurando”; “fiscalizando”; “punindo”. Mas as tragédias e desterros se repetem e se sobrepõem. Na verdade, tudo é uma questão de impunidade e desqualificação. Ao contrário da conjugação verbal, as ações não são incoativas. Elas cessam tão logo outro escândalo vai ao ar. Em termos de Brasil, isso significa uma fração pequena de dias, talvez horas.
É compreensível que a presidente Dilma Rousseff tenha esboçado lágrimas ao discursar sobre a tragédia gaúcha, ainda em solo chileno. Apenas em sua gestão, o país já foi vitimado por catástrofes desesperadoras. Para elencar algumas delas, basta relembrar a tromba d’água na região serrana do Rio de Janeiro, a explosão da violência urbana nas grandes cidades, a ascensão do chamado “Novo Cangaço” no interior do país, a seca devastadora do semiárido brasileiro, os terremotos no norte de Minas Gerais, as constantes calamidades nos sistemas públicos e tantas outras barbaridades. Agora o incêndio na boate gaúcha.
Dilma tem motivos de sobra pra chorar. Para cada uma dessas desgraças há, pelo menos, uma dezena de casos de corrupção, desvios de recursos públicos, mamatas mil, um sem fim de apaniguados gerindo o país e gestando nossas malquerenças governamentais. Para cada morto nessas tragédias há um Lula, um Renan, um Sarney, um Cabral, um Delúbio, um Dirceu. Há muitos Tiriricas a bradar que “pior que está não pode ficar”, carregando democraticamente milhões de votos desqualificados na nação da palhaçada.
No fim da linha, como é próprio dos povos paupérrimos (financeira e culturalmente), os cidadãos lotam as igrejas, templos e terreiros colocando nas mãos de Deus ou de seus Deuses o peso da responsabilidade pelas desgraças que nos acometem. Quando mais deveriam tentar ser realistas, mergulham nas abstrações. Triste e lamentável equívoco. A Deus (e aos Deuses), para aqueles que têm fé, cabe apenas o conforto para as almas que foram e para os homens que cá ficaram. Todo resto é de nossa exclusiva (ir)responsabilidade. Enquanto insistirmos fugir dessa realidade e não punir os reais responsáveis, continuaremos com o diabo na casa da farinha.
HELDER CALDEIRA
Escritor, Jornalista Político e Apresentador de TV
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