De dentro do quarto, a voz masculina ressoava. “Não quero a azul!”, dizia. Do alto de seus 84 anos, Orlando Campos de Souza queria escolher a camisa com a qual concederia a entrevista. Saiu do quarto em direção à compacta sala do apartamento, onde recebeu o CORREIO, vestindo amarelo e acompanhado de uma muleta.
Naquele cenário – um apartamento minúsculo, no primeiro andar de um imóvel comercial na Rua Fortaleza, num beco do Imbuí onde carros não entram – a figura de Seu Orlando parece modesta.
Quem não conhece sua história dificilmente imaginaria que aquele homem foi o maior responsável pelo trio elétrico que o Carnaval de Salvador conhece hoje. Foi quem criou a carroceria de metal, colocou banheiro, escadas e até elevador.
A verdade é que aquele senhor ficou mais conhecido pela alcunha que a própria folia lhe deu: Orlando Tapajós. Com o Trio Elétrico Tapajós, ganhou o Brasil, divulgou a Bahia e quebrou alguns tantos recordes. Sem o Tapajós, vive hoje no apartamento de cerca de 30 m², alugado por R$ 500, pelo filho mais velho. Vive com a terceira dos sete filhos que teve, ao longo de três casamentos, e com uma pensão de um salário mínimo.
Foram mais de 60 Trios Tapajós – todos próprios. Foram pelo menos duas casas: uma na Pituba, com piscina e cinco quartos, e uma na praia de Itacimirim, em Camaçari, com nove suítes.
O trio
Seu Orlando virou ‘Tapajós’ em algum momento de 1956. Hoje, a memória já não está tão boa e ele arrisca até dois anos depois, em 1958. À reportagem, ele se desculpa. Diz que a cabeça está ‘meio tonta’. Mesmo assim, começa a lembrar de tudo que fez pela Bahia e pelo Carnaval.
Lembrou de quando começou – ainda quando diretor do Flamenguinho, antigo clube de futebol do bairro de Periperi. Na época, dariam uma festa e Orlando decidiu contratar o trio Cinco Irmãos, que era ‘o 2º da Bahia’, criado logo após o de Dodô e Osmar. No entanto, no dia da festa, ninguém apareceu: nem trio, nem os Cinco Irmãos. Mais tarde, Seu Orlando descobriria que o pai dos irmãos era rival de um dos diretores do clube.
Assim, o universo deu um empurrãozinho. Revoltado, Orlando teve a ideia que mudaria sua vida. De repente, ele, que nunca tinha pensado em ter um trio elétrico na vida, decidiu que faria o seu próprio. “Peguei o microfone e falei para o povo: vou fazer um trio para mim. O povo aplaudiu muito”, lembra.
Recorreu justamente a Dodô, que, em algum momento do passado, tinha dito que, se um dia ele quisesse, lhe ensinaria o ofício dos trios. Dodô indicou, então, com quem encomendar os instrumentos de profissão e onde comprar os outros artefatos. Aos poucos, começava a nascer o primeiro Trio Tapajós.
O nome veio do pai. “Ele disse ‘bota Tapajós”, conta Seu Orlando, sem se recordar muito dos detalhes do motivo. Naquele momento, nem Orlando, nem seu pai faziam ideia de que o Tapajós daria origem a vários outros ‘jós’: Marajós, Valnejós… Todos queriam um Tapajós para chamar de seu.
Crescimento
As festas começaram a surgir. Primeiro, no próprio bairro de Periperi, onde morava. Festas de largo, eventos para políticos… “E, aí, fui melhorando, prosperando, e não deu outra: o Tapajós começou a aparecer em todos os lugares”.
A ascensão do Trio Tapajós coincide justamente com o período em que Dodô e Osmar ficaram fora do Carnaval de Salvador. Na época, o sogro de Osmar Macêdo, seu Armando, faleceu. O sogro sempre tinha sido um dos maiores apoiadores do trio elétrico e, desgostoso, Osmar preferiu se afastar.
O Tapajós, então, foi o primeiro trio elétrico a percorrer o Brasil. Esteve em grandes eventos – que vão desde o Círio de Nazaré, em Belém (PA), até na abertura do Carnaval do Rio de Janeiro, antes mesmo das escolas de samba. “Quando chegamos, eles não sabiam o que era trio e mandaram a gente ir na frente. Eu saí tocando e o povo enlouqueceu. Depois disso, o pessoal das escolas de samba nunca mais deixou o trio sair lá”, diz ele, aos risos.
No currículo do Tapajós, há desde a Festa da Uva, no Rio Grande do Sul, até o Festival Internacional da Canção. Estiveram presentes até mesmo na inauguração da TV a Cores e no primeiro campeonato mundial do Flamengo. “Levei um ônibus cheio de artistas para tocar na Lagoa. Capoeiristas, Paulinho Camafeu… Todo mundo para tocar o Carnaval”. Para completar, foi o primeiro trio a gravar um LP.
Caetanave
Uma de suas obras mais memoráveis foi justamente a criação da Caetanave – o trio elétrico em forma de nave que homenageou Caetano Veloso, em 1972. A história da inspiração é famosa: Orlando viajara ao Rio para comprar material. No avião, leu uma revista que falava sobre o Concorde, um avião supersônico que foi produzido entre as décadas de 1960 e 1970. O impacto da imagem foi tão grande que ele decidiu que aquele seria seu próximo trio.
Pegou a revista, levou ao banheiro e, discretamente, arrancou a página com a foto da nave. Guardou entre o pé e o solado do sapato. “Fiz o trio escondido, sem ninguém saber. Só faltava o nome”, recorda. O trio foi batizado justamente com a chegada de Caetano ao Brasil, depois de voltar do exilio. O próprio Caetano subiu ao palco com Gilberto Gil, Gal Costa e Maria Bethânia. “Eu estava com a maior tripulação”.
O professor Paulo Miguez, vice-reitor da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e pesquisador do Carnaval, tem uma boa definição para Seu Orlando. “Pai e mãe não é apenas quem fez, é quem cria. Se Dodô e Osmar fizeram essa coisa maravilhosa, não tenho dúvida que o crescimento do trio se deve, em larga medida, ao esforço maravilhoso feito por Orlando”.
Dificuldades
Ele não sabe, ao certo, quando as coisas deixaram de dar certo. O que sabe é que chegou a fazer um Tapajós novo por ano. Em alguns anos, fez três novos trios. Em um dado momento, isso ficou insustentável – ele arrisca que o último trio tenha sido em 1994, mas reconhece que a memória pode ter lhe dado uma rasteira.
Naquela época, já não tinha condições de ter um trio elétrico novo por ano. Ele não estava mais sozinho – além dos trios, os blocos e artistas tinham ganhado espaço e dificultado a concorrência. Perdera espaço. Orlando, então, começou a construção do último ainda com dívidas do penúltimo. Foi a derrocada: teve que vender tudo.
Mesmo com dificuldade, Seu Orlando analisa o presente e o passado. Sabe que teve tudo e que, hoje, nem é tão lembrado. Desde 2015, dá nome ao circuito do pré-Carnaval: o percurso invertido, que sai do Clube Espanhol e vai até Ondina, nos dias de Fuzuê e Furdunço.
Não pode deixar de tomar os remédios – a saúde já não é a mesma há alguns anos. Nunca bebeu, nunca fumou, nunca teve vícios, mas é cardíaco. Teve um derrame e três infartos nos últimos 15 anos. Devido ao derrame, teve problemas de fala e locomoção. Precisou reaprender tudo. Além disso, há anos convive com um câncer de próstata.
Passou seis anos viajando a cada três meses ao Hospital do Câncer de Barretos (SP), para acompanhar o tratamento. Pela idade, não foi submetido à quimioterapia, apenas à radioterapia. Também não foi operado, mas, hoje, a doença está estável.
Atualmente, ele não tem mais trio, mas costuma ser convidado para subir no de um amigo ou outro durante a folia. Às vezes, é convidado para um camarote. O que importa é que Orlando Tapajós é tão apaixonado pelo trio elétrico que nunca deixou de ir ao Carnaval. E, se depender de sua vontade, isso não vai mudar.
Abti planeja homenagem
Seu ex-pupilo, o fabricante de trios Waldemar Sandes, 72 anos, é um de seus maiores amigos hoje. Waldemar tem lutado, junto à Associação Baiana de Trios Independentes (Abti) para conseguir alguma melhoria para Orlando. Sócio da entidade, planeja lançar uma campanha, neste Carnaval, para que o poder público dê um trio a Orlando.
“Queremos homenageá-lo. Acho que ele merece um trio de presente. Um trio bom. E esse é um bom momento, porque estão querendo mudar o trio elétrico na Bahia”, defende Waldemar, que foi presidente da Abti por 20 anos.
Ele defende que só a carroceria já seria uma ajuda. Com ela, Orlando conseguiria participar de editais públicos, por exemplo. Com parte do valor do aluguel, também conseguiria arrendar os equipamentos de som, por exemplo. Assim, poderia viver bem pelo resto da vida.
Cronologia
1950 – Dodô e Osmar criam o primeiro trio elétrico da história
1956 – Orlando, então diretor de um clube de futebol de Periperi, cria o Trio Tapajós. Ele viria a ficar conhecido como Orlando Tapajós
1972 – Orlando Tapajós cria uma de suas invenções mais icônicas: a Caetanave, trio em forma de nave que homenageava Caetano Veloso, que voltará do exílio
1981 – Luiz Caldas, hoje Rei do Axé, encontra Tapajós em Itabuna. O cantor vem para Salvador e passa a liderar o Tapajós
1981 – Trio Tapajós toca na comemoração do título mundial do Flamengo, no Rio de Janeiro
1994 – Segundo Tapajós, foi o ano em que fez o último de seus trios. O equipamento também foi vendido
De olho nos trios
Seu Orlando é o responsável pela super estrutura dos trios – atualmente revista. Já há uma tendência de veículos mais compactos e com estrutura enxuta – para garantir a segurança dos foliões e também para evitar que o peso dos trios provoquem danos a equipamentos ou ao calçamento da cidade, por exemplo.
De tanta beleza e capricho de seus ‘artesãos’, os trios são atrações turísticas. Até mesmo antes de mostrarem todo seu potencial sonoro na avenida, poderão ser contemplados.
A vistoria dos trios será aberta, na Orla da Boca do Rio, no mesmo local onde foi realizado o Festival da Virada, no Réveillon. Antes, os equipamentos eram vistoriados no Parque de Exposições, em Itapuã.
“O trio elétrico chama a atenção, pode trazer visibilidade turística. Lá no Parque de Exposições, ninguém via. Agora, vai ser como uma vitrine”, explicou o coordenador do Carnaval 2018, Paulo Leal.