De Jacinto Flecha
Meu amigo americano olhou-me um tanto desconcertado, parou um pouco para pensar, e esclareceu: Os sinos festivos do Jingle bells acompanham a música e lhe dão o ritmo, lembrando os guizos do animal que puxa o trenó; e a época do Natal é muito boa para se passear de trenó na neve. Resumida assim a explicação, ele me fez saber que estranhara a minha pergunta, pois sempre julgou isso muito natural.
É possível que algum leitor conheça apenas a versão brasileira do Jingle bells, impregnada de referências natalinas a sino de Belém, Deus menino, rezar na capela, noite bela, etc. Por isso, antes de alguém estranhar minha estranheza, responsável pela do meu amigo americano, informo que a letra original do Jingle bells não contém nenhuma referência ao Natal, gira apenas em torno de um alegre passeio de trenó pelos campos, que poderia realizar-se em qualquer período nevado do ano.
Bem distantes desses costumes, os brasileiros não compreenderiam a maioria das referências psico-atmosféricas presentes na música, daí um letrista vincular diretamente ao Natal a versão brasileira. Acho louvável a iniciativa, embora não me agrade o aspecto alegrote, bem pra lá do limite entre o leve e o leviano. A lentidão pensativa e respeitosa do Noite feliz, muito mais adequada para reverenciar a presença augustíssima de Deus entre os homens, não dispensa no entanto a alegria. Na música natalina alemã, a alegria atinge a alma em toda a sua profundidade, não é apenas epidérmica como a saltitante e sorridente musiqueta americana.
Associar o Natal à neve é um costume proveniente dos países cristãos onde a neve cobre a natureza nessa época do ano. No Brasil, ela quase só existe no dicionário e na poesia, muito lembrada onde entram anciãos com cabelos marcados pela neve do tempo, ou para realçar obranco como a neve de alguma coisa. Em relação ao Natal, quase nada significa para nós, embora presente em cartões de Natal mais adequados ao Polo Norte ou à Lapônia. Parecem de brinquedo as casinhas quase sucumbindo às grossas coberturas brancas, as renas e trenós movimentando-se suavemente, os sinos bimbalhando em torres de capelinhas iluminadas… e o onipresente Papai Noel (ho! ho! ho!) – o sorridente, prestativo e vermelhão Papai Noel.
(Será que ele acredita mesmo em Papai Noel?!)
Sem dúvida nenhuma, caro leitor. Aproximando-se o Natal, basta ligar a TV, entrar num shopping, abrir uma revista ou jornal, surfar na internet, e lá está ele com seu sorriso elástico de velhote velhaco, sempre pronto a brincar com uma criança, indagar qual presente ela quer receber dos pais, e assim avalizar diante do comprador o que o comerciante precisa vender. Como duvidar de velhinho tão real e agradável, tão amigo das crianças e do cartão de crédito dos pais?
Entendeu por que não posso deixar de acreditar em Papai Noel? Constato sua existência pelo que vejo, só isso. Mas quando a pergunta é se ele deveria existir, não vacilo numa resposta clara e definidamente negativa. Sou até propenso a supor você e eu em extremos opostos sobre este assunto. Como a maioria das pessoas, você pode achar o Papai Noel engraçado (todo palhaço tem de ser engraçado); tem uma roupa bonita, atraente (ridícula de ponta a ponta, das botas ao gorro de dormir); tem uma risada diferente (muito útil, se você quiser amestrar animais); resolve o problema dos pais na escolha dos presentes (espero que você saiba conversar com seus filhos).
Se você perguntar aos seus amigos de onde surgiu o costume natalino de dar presentes aos filhos, provavelmente muitos não o relacionarão com os presentes dos Reis Magos ao Menino Jesus. Na perspectiva da Boa Nova evangélica, os presentes aos filhos adquirem significado profundo, elevado, colocando-os na esfera do sobrenatural e divino. Dando ao filho um presente, homenageamos na pessoa dele o Menino Jesus, recém-nascido vinte séculos atrás, quando recebia presentes régios. Os presentes natalinos tomam assim o caráter de homenagem ao aniversariante.
Será que a pantomima do Papai Noel remete as crianças a esse nível de cogitações? Não quero imaginar da sua parte uma resposta afirmativa.
Desde o aparecimento do Papai Noel no fim do século XIX, ele não passa de um artifício propagandístico, comercial. Foi criado para vender Coca-cola, mas depois o instrumentalizaram para vender outras coisas. Funciona bem para essa finalidade. Mas ele faz só isso? Será só esta a sua função? Será só este o objetivo, ao popularizar esse personagem ridículo e interesseiro? Você já notou como o aniversariante ficou esquecido, marginalizado, depois que o Papai Noel ajudou a comercializar o Natal?
O Menino inocente de Belém atraiu inimigos desde o nascimento, forçando-o a um exílio no Egito para não ser degolado. Você acha que hoje ele não tem inimigos? Pelo contrário, os inimigos nunca foram tão numerosos, e agem empenhadamente na tarefa de fazê-lo desaparecer da vida das crianças, de todos. Como? Deslocando a atenção para um palhaço gorducho, como se o aniversariante não existisse.
Caro leitor, cante a nossa versão do Jingle bells, mas prefira o Noite feliz. Dê presente aos filhos no Natal, mas ensine-os a homenagear o aniversariante, a venerar quem fez muito mais por nós do que todos os gorduchos vermelhos. E assim você também terá um Natal feliz, tornando felizes os seus filhos e o aniversariante. (*) Jacinto Flecha é médico e colaborador da Abim