Por Gabriel Borges, jornalista.
Imaginem a seguinte situação: em uma mesma rua se encontram um terreiro de umbanda e uma igreja pentecostal. Em uma determinada noite fiéis da igreja pentecostal invadem uma cerimônia que ocorre no terreiro, agridem as pessoas que se encontravam no local e destroem as estátuas e os objetos sagrados. Tudo isso regado a gritos de que ali se encontravam “adoradores de Satanás” e que estavam “agindo em nome de Deus”. Os agressores são presos. Porém, na igreja pentecostal, o pastor que celebra o culto continua se referindo em tom triunfalista aos adeptos do terreiro local como “endemoniados”, chama os orixás e entidades de “demônios disfarçados” e estimula uma “cruzada” contra o terreiro. É devidamente denunciado para as autoridades, mas o pastor recorre a uma cartada: inverte a acusação de discriminação religiosa e, com seu discurso, transforma-se de agressor para “vítima”, acusando as autoridades de restringirem sua liberdade. Ganha o apoio de diversas outras denominações evangélicas, com pastores televangelistas e políticos teocratas insuflando o discurso de vitimização do pastor e dizendo que as autoridades querem uma “ditadura umbandista”.
Essa situação é muito comum no Brasil, embora mudem os atores. Em geral acaba não levando a lugar nenhum, com o agressor continuando o seu discurso violento com o benefício de um tabu. Esse tabu é a ausência de um debate sobre a liberdade religiosa no Brasil. Considerado um valor absoluto, a sociedade brasileira teme colocá-lo em pauta até quando a liberdade de culto ultrapassa os limites da legalidade e do bom senso. Encerrados nos templos, sacerdotes pregam o que bem entendem, podendo passar ou uma mensagem positiva, ou uma mensagem que possa prejudicar um determinado indivíduo ou grupo. Quando sentem seu discurso ameaçado, recorrem ao truísmo da liberdade religiosa e da tolerância para que qualquer debate seja encerrado.
A impressão é de que os templos religiosos são locais onde á sociedade e o estado não encontram vez de impor qualquer norma, sendo a única lei obedecida, e de forma muito relativa, aquela manifestada pela deidade adorada no local e de seu livro sagrado. Tal fator, combinado à facilidade de se montar novas religiões no Brasil – onde templos religiosos são isentos de impostos por serem encarados como entidades sem fins lucrativos – tem fomentado um poderio que fica cada vez mais forte e que se torna cada vez mais difícil de controlar. Quando a sociedade e o estado não debatem se uma determinada religião pode pregar sobre aquilo que bem entender, sem se importarem se esse comportamento é negativo ou prejudicial, as religiões ficam livres para impor sua agenda ao estado – recorrendo até mesmo à eleição de bancadas parlamentares que atendam aos seus interesses e que visem impor seus dogmas para o restante da sociedade.
Não podemos continuar tratando a religião e o culto como instituições intocáveis. Não são, de maneira alguma, entidades sem fins lucrativos. Cada vez mais ganham notoriedade os sacerdotes neorricos, donos de verdadeiros impérios empresariais que não se limitam somente ao templo, embora esse seja o primeiro e, possivelmente, o mais lucrativo “negócio”. Também não devem ser encaradas como pilares da ética e da moral de outrora. Apologia à intolerância, à discriminação, à destruição de culturas e religiões diferentes e também à alienação individual são constantes em diversos templos do país. Temos uma visão do século XVIII sobre a religião. Mas na realidade muitas religiões atuais são guiadas pela agressividade competitiva da lógica de mercado e não pela coesão social que a crença a uma divindade propõe.
Mesmo assim, continuamos com medo de colocar a questão em pauta. O que está no templo religioso, fica no templo religioso. Se algum determinado grupo se sentir prejudicado pela mensagem lá passada, azar! Quando há qualquer oportunidade para se debater sobre a questão, o debate é imediatamente desviado e distorcido para que insufle os sentimentos dos fiéis e todos os argumentos objetivos são soterrados por uma enxurrada de falácias. E continuaremos a não perceber que deve haver liberdade religiosa, mas que religiões não deveriam ser isentas das responsabilidades que recaem sobre qualquer manifestação social, sendo submetidas a um estado laico e democrático. Publicado originalmente no blog do autor.
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