Lilian Ferreira Do UOL, em São Paulo
Esther sempre sonhou em ser mãe, mas seu marido é estéril e não quer filhos. Contra a vontade de Paulo, a estilista procura uma clínica de fertilização. Diante do impasse, eles se separam.
Então, Esther recebe, sem saber, o embrião resultante da fecundação do óvulo de Bia e do espermatozoide de Guilherme, irmão morto de Danielle, médica que fez o tratamento. Mas a secretária da médica mexe em seu computador e descobre que o bebê é filho dos ex-namorados e decide contar tudo para Bia, que, agora, quer a guarda da criança.
Uma história da novela Fina Estampa que poderia ser da vida real, certo? “O que ocorre na novela jamais poderia se passar na realidade, a médica desrespeitou várias regras estabelecidas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), órgão que regulamenta esse tipo de atividade médica no Brasil”, explica Maria Cecília Cardoso, chefe do laboratório de reprodução assistida do Vida – Centro de Fertilidade da Rede D’Or, do Rio de Janeiro.
Raul Eid Nakano, diretor clínico e médico da Ferticlin, Clínica de Fertilidade Humana, de São Paulo, diz que se sente ofendido com a novela. “A novela retrata como quer e confunde nossas pacientes”. “A novela está na contramão da ética para depois apresentar um revés”, acredita Arnaldo Schizzi Cambiaghi, diretor do Centro de reprodução humana do Instituto Paulista de Ginecologia e Obstetrícia (IPGO).
A principal questão apontada pelos especialistas (alguns, inclusive, consultores da novela) é o anonimato. Pela ética, a médica não poderia deixar a funcionária ter acesso a dados sigilosos e ela, por trabalhar na clínica, também não poderia contar à doadora quem recebeu o óvulo e nem com que sêmen foi fecundado. O problema é consequência de outra infração cometida pela médica: usar material genético de parentes e pessoas de seu círculo social.
“Você não pode usar o óvulo de uma pessoa de seu círculo de amizade justamente para não se envolver em uma questão tão delicada”, salienta Cardoso. No caso, a secretária é amiga da doadora e não aguentou manter o segredo.
Flávio Garcia de Oliveira, diretor da Clínica de Ginecologia e Obstetrícia FGO, diz que é necessária uma autorização de consentimento para doação de sêmen pós morte, e que isto não foi tratado na novela.
Nakano destaca outra imprecisão: Esther foi à clínica sozinha e iniciou o tratamento mesmo contra a vontade do marido, o que, de acordo com ele, não é possível. “A infertilidade é conjugal, os dois devem assinar um documento para fazer a fertilização. Se a mulher é casada, pedimos o consentimento do marido”, ressalta.
Garcia de Oliveira, que também é membro da Sociedade Americana de Medicina Reprodutiva, lembra que as atitudes da médica não infringem a lei, porque não há legislação que regulamente a reprodução assistida no país, mas que ela está contra o código de conduta do CFM e deve ser punida nesta instância.
Além disso, as doações no Brasil devem ser altruístas, sem caráter lucrativo, nem comercial. Por isso, é difícil encontrar uma doadora espontânea como foi o caso de Bia, na novela. As doadoras geralmente são mulheres que estão em tratamento de fertilidade. “Doar um óvulo não é tão fácil quanto doar sangue ou sêmen. A mulher passa por um processo longo e complexo, que inclui cirurgia”, explica a chefe do Centro de Fertilidade da Rede D’Or.
Para coletar óvulos, a mulher passa por estimulação ovariana, recebe injeções diárias de hormônios durante 12 a 20 dias. Após esse período, ela passa pela aspiração dos óvulos, um procedimento cirúrgico.
A escolha dos doadores
Para escolher o doador de sêmen, a mulher recebe um catálogo do banco de sêmen com características físicas (cor dos olhos, pele, altura) e psicológicas, além de informações como religião, escolaridade, hobbies, tipo sanguíneo etc. dos doadores, que são identificados por códigos. O óvulo geralmente é escolhido pelo médico, também seguindo essas premissas. Em alguns casos, são apresentadas fotos dos doadores quando crianças.
Todas as mulheres que passam por fertilização recebem acompanhamento psicológico, mas as doadoras recebem atenção especial. “Há uma avaliação inicial, para ver se a pessoa tem estrutura emocional para ser doadora. Tem que ter o aval da psicóloga de que ela está emocionalmente preparada. A avaliação é chave para um processo bem sucedido”, conta Mariangela Badalotti, diretora do Fertilitat, Centro de Medicina Reprodutiva, de Porto Alegre.
Segundo ela, graças à triagem, nunca houve um caso de arrependimento na clínica. A médica lembra que é comum os homens não concordarem com a doação em um primeiro momento, mas que ao longo do tratamento eles mudam de opinião.
Badalotti conta que o principal motivo para a doação é a identificação com a dificuldade de engravidar, já que a maioria das doadoras também passa por um processo de fertilização, a chamada doação compartilhada. Nestes casos, a doadora tem parte de seu tratamento pago pela receptora.
Em regiões com menos de 1 milhão de habitantes, os médicos devem tomar cuidados quanto à transferência de gametas (óvulos e espermatozoides) para pessoas da mesma cidade dos doadores. “Isso evita que um doador venha a produzir mais do que uma gestação de crianças de sexos diferentes, minimizando os riscos de irmãos biológicos se relacionarem no futuro”, explica Cardoso.
As doações também não podem ser feitas entre parentes e conhecidos. Os médicos afirmam que, por mais que exista um contrato de doação, no futuro, a mulher ou homem pode se arrepender e querer disputar a guarda na Justiça. Não muito diferente do que ocorre na novela.
Quem é a mãe?
Bia descobriu que Esther teve uma filha, fruto da fecundação de seu óvulo doado com o espermatozoide de seu namorado que morreu, e agora quer a guarda de Vitória. Muito se especula se ela irá conseguir ficar com a filha e o que seria certo nesta situação.
Segundo o advogado Ronaldo Gotlib, a doação de gametas no Brasil é tratada legalmente como uma relação contratual. A mulher doadora assina um contrato de doação. Mas na trama da novela há um caso de força maior, o que faz a decisão da guarda da criança passar a depender do entendimento do juiz.
“São muitas coisas envolvidas. A clínica falhou quanto ao sigilo, ela tem responsabilidade civil sobre isso. Então a doadora soube que o sêmen era do namorado morto. Isso tem que ser considerado. E, como não há legislação sobre o tema no país, vai depender do entendimento do juiz determinar a guarda”, afirma Gotlib.
O advogado explica ainda que a fertilização não é uma adoção: “o registro de nascimento da criança é como um filho natural”.
Idade para usar óvulo doado
Esther tem mais de 40 anos e, por isso, usou óvulos doados para a fertilização. Ao contrário dos homens, que produzem espermatozoides constantemente, os óvulos das mulheres envelhecem com elas. Portanto, o óvulo de uma mulher com mais de 40 é considerado “velho” e apresenta maior dificuldade em ser fertilizado. Assim, mulheres acima desta idade geralmente utilizam óvulos doados.
Nakano explica que, nessas casos, o padrão é optar pela doação, mas que há exames hormonais para detectar se há estoque de óvulos, para então ver se eles são saudáveis. Cambiaghi diz que nesta idade há mais chances de má-formação, abortamento e anomalias herdadas.
Já para doar os óvulos, a mulher deve ter no máximo 35 anos, segundo os especialistas consultados.
Já para doar os óvulos, a mulher deve ter no máximo 35 anos, segundo os especialistas consultados.
A idade influencia também no sucesso do tratamento. O diretor clínico da Ferticlin diz que mulheres com menos de 30 anos têm mais de 50% de chance de engravidar. Em mulheres de 30 a 37 anos a taxa vai de 35 a 50%, em média. Acima dos 40 anos, esta taxa cai ainda mais. Para se ter uma ideia, uma mulher sem problemas de fertilidade tem 20% de chance de engravidar a cada ciclo menstrual.
Um tratamento de fertilização in vitro custa de 10 a 15 mil reais, o mesmo preço de quem deseja congelar os óvulos. Já a manutenção de óvulos congelados gira em torno de mil reais anuais. O sêmen, adquirido de um banco, custa cerca de 1.500 reais.
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