Não me pronunciarei sobre as várias análises do fenômeno favela existentes no livro Um país chamado favela (Editora Gente, São Paulo, 2014), que publica a pesquisa dirigida por Renato Meirelles, presidente do Instituto Data Popular, e pelo produtor cultural Celso Athayde. Tais análises, por vezes de teor bastante esquerdizante, algumas até com um certo ranço marxista pré-concebido, não são o que o livro tem de mais autêntico.
Também não tratarei da repercussão que teve na vida das favelas a instalação em diversas delas das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora). Sobre este ponto, pesquisa de 2013 mostrou que “75% dos moradores de favelas eram favoráveis à pacificação pela polícia (55% totalmente a favor e 20% parcialmente a favor).”
Interessa-me aqui, como o melhor fruto que se pode tirar da leitura das 168 páginas que constituem a obra, salientar alguns dos fatos que a pesquisa, aliás muito bem feita, traz à tona.
Sem negar — e os autores não o negam — que nas favelas medram o tráfico de drogas, o banditismo e ainda outras mazelas, entretanto o ambiente nelas existente não se limita a tal aspecto negativo, o único praticamente salientado pela mídia.
Há uma outra face da favela, ocultada ao público das cidades como aquela face da lua que nunca ninguém vê, e que é o melhor que existe na favela.
Essa face oculta se compõe, grosso modo, de dois traços fundamentais: um resto de organicidade, muito vivaz, e um empuxo para melhorar, próprio dos organismos vivos que não se deixam abater pelas condições adversas nem paralisar pelo torpor.
Restos vivos de organicidade
Afastado, no inteiramente mas em boa medida, do olho do furacão dos grandes centros, o ambiente interno das favelas se desenvolve naturalmente, com traços ainda de uma sociedade orgânica, que a máquina trituradora do mundo moderno não conseguiu inteiramente pulverizar.
Não exageremos nada. Não se trata do ambiente sossegado e aprazível de uma aldeia medieval, nem de longe. Mas o que surpreende é que em pleno século XXI, com suas agitações e lufa-lufas sufocantes, sua agitação frenética, restos sadios de organicidade possam ainda medrar.
“O povo da favela [...] quer ser feliz, com os parentes e amigos, no lugar onde tem suas raízes”. Eles são 11,7 milhões de habitantes, o que equivale a 6% da população brasileira.
Uma análise geral dos resultados da pesquisa exibe uma favela muito menos pobre do que se imaginava, sendo que 94% dos favelados se consideram felizes, “amam o cônjuge, adoram os filhos e folgam com a boa saúde”.
81% dos moradores gostam da comunidade em que estão fixados e 66% não estão dispostos a abandoná-la. A principal razão é o estabelecimento de fortes laços sociais entre os moradores. Ali, o cidadão tem quase sempre com quem contar. Há alguém que pode lhe emprestar algum dinheiro ou o cartão de crédito na hora do aperto. Há outro que pode tomar conta de seus filhos enquanto ele trabalha. E há sempre aquele que pode ouvir suas confissões no boteco ou no salão de beleza.
Há um senso aguçado de união, que se manifesta, por exemplo, “quando uma mulher cuida do filho pequeno da vizinha que trabalha fora, quando o jovem decide participar de um mutirão para livrar do lixo um barranco”. Tudo isso é feito com base numa “cultura do comprometimento e não pela imposição da lei”.
A favela, mais do que outros núcleos de moradia, é “um lugar vivo, orgânico, que tem coração, que respira, composto pela síntese de suas gentes, suas histórias e suas culturas”. É “o ambiente das nossas experiências, onde criamos raízes, onde nos sentimos seguros, onde nos consideramos em casa”. A favela “enternece quem ali viveu a infância, que recebeu na construção modesta o primeiro carinho materno.”
“A casinha azul, estreita, encarapitada no morro, tem a cara e um pedaço da alma de José que a construiu com as próprias mãos, auxiliado pela esposa e pelo filho mais velho. Ainda que reduzida, tosca e varada de furos no telhado, é sua paixão. É igual a nenhuma outra.”
“64% dos entrevistados têm parentes que moram no mesmo núcleo. Todos se conhecem. Há um conceito de família estendida. O mano é irmão. As boas senhoras são todas tias”.
“A favela, de maneira geral, gosta de acolher. O morador tem orgulho de servir aos iguais e, quase sempre, quer mostrar seu mundo aos conhecidos do asfalto”.
Empreendedores à brasileira
Há “um processo contínuo de ascensão social e econômica. No cotidiano de lutas e desafios, os moradores das favelas favoreceram-se de mais recheio na carteira e mais comida na geladeira.” Para isso, muito brasileiramente, “misturam a garra e o jeitinho”.
Para o morador, “as coisas parecem bem se a reforma no segundo andar da casa do vizinho progrediu. Se esse mesmo sujeito trocou seu Passat 76 por um Gol seminovo. Isso tudo é visto como sinal de que a comunidade como um todo avança”. “Se ele conseguiu, posso conseguir também”.
Gente que sempre viveu de salário cogita, agora, montar uma empresa na comunidade. Pode ser uma pizzaria, um albergue, uma loja de presentes ou uma oficina de reparos automotivos.
É o caso da doceira que incumbia os filhos de distribuir seus bolos, queijadinhas e brigadeiros no asfalto e que agora tornou-se uma microempresária do segmento, finalmente formalizada. Pelo preço mais em conta, ela adquire os melhores ingredientes, evita o desperdício na preparação e tem a fórmula para agradar os exigentes paladares da clientela.
A melhora de vida, poucos a atribuem às políticas públicas. 40% atribuem-na a Deus, 42% ao próprio esforço, 14% à família. Por uma espécie de sanidade mental e verdadeira preservação, “não enxergam o governo como provedor de bem-estar”.
São “homens e mulheres particularmente resilientes, que aprendem, enfrentam preconceitos e fazem acontecer.” Pode-se “validar assim a tese de que o brasileiro nunca desiste da luta”.
Não se nota, nos resultados da pesquisa, indícios da inveja que leva à luta de classes: 75% se veem na classe média em 2023, enquanto 10% esperam conquistar um posto na classe alta. “Para muitos, o sonho maior é mergulhar no mundo do consumo e não contestar o sistema”.
Por exemplo, em 2010 a Rocinha tinha 130 mil habitantes e aproximadamente seis mil empreendimentos, a maior parte deles atuando na informalidade. Existe ali o “Carteiro Amigo”, um serviço alternativo de entrega de correspondências que complementa a operação dos Correios no emaranhado da favela, com lugares de difícil acesso, como vielas e becos desprovidos de nomes e números.
Numa favela de Porto Alegre, Cláudio Amorim, 65 anos, “considerava que o fundamental era adquirir boa carne para seu churrasco de fim de semana. Citava outras prioridades: ter na cuia o chimarrão preferido e na geladeira sua cerveja predileta: o resto aí é com a ‘nega veia’, porque é ela que faz as compras”.
13% dos entrevistados têm motocicleta, 20% automóvel, 28% TV por assinatura, a mesma média do País. 55% possuem forno de microondas, mais do que no Brasil em geral, e 69% máquina de lavar. Em 2013, 16% já tinham viajado de avião.
Faltam missionários católicos
Ante o quadro aqui resumidamente apresentado, é impossível não perguntar onde estão os missionários católicos dispostos a ir até essas almas para levar-lhes o pão da palavra de Deus, quão mais necessário do que o pão que alimenta os corpos!
Fala-se tanto em ajuda material. Onde estão os que proporcionam a ajuda espiritual, o catecismo, o ensino moral e religioso, a conversão da alma a Deus, os sacramentos, a confissão, a comunhão do Corpo de Cristo?
Em outros tempos, formar-se-iam congregações religiosas só para fazer apostolado junto às favelas. Porém, é tão pronunciada a decadência de nossos dias, que caso tais congregações se constituíssem, é de se temer que elas buscariam antes açular a inveja dos moradores para levá-los à revolta e à luta de classes.
De modo que, contemplando o importante aspecto das favelas que nos é revelado pelo livro em questão, somos, de um lado, levados a nos alegrar pelos valores positivos apresentados, que não são poucos, mas de outro, compelidos a nos lembrar de que “Jesus viu uma grande multidão e compadeceu-se dela, porque eram como ovelhas que não têm pastor”. (Mc 6,34).
(*) Gregorio Vivanco Lopes é advogado e colaborador da ABIM
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