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sexta-feira, 15 de junho de 2012

Um advogado não pode agir como um comparsa

"sempre que Márcio Thomaz Bastos triunfa num tribunal, a Justiça é derrotada e a verdade morre outra vez"
“Serei eu o juiz do meu cliente?”, pergunta Márcio Thomaz Bastos no título do artigo publicado na Folha desta quinta-feira.
O cliente em questão é, segundo o doutor, “Carlos Augusto Ramos, chamado Cachoeira”, que contratou em março os serviços do ex-ministro da Justiça capaz de enxergar inocentes até em serial killers americanos.
“Não o conhecia, embora tivesse ouvido falar dele”, informa no quinto parágrafo. Ouvira o suficiente para cobrar R$15 milhões pela missão de garantir que envelheça em liberdade.
Depois de consumir dezenas de linhas na descrição do calvário imposto a um cidadão sem culpas por policiais perversos, promotores desalmados e juízes sem coração, o doutor enfim se anima a responder à pergunta do título.
“Serei eu então juiz de meu cliente?”, repete.
“Por princípio, creio que não.
Sou advogado constituído num processo criminal.
Como tantos, procuro defender com lealdade e vigor quem confiou a mim tal responsabilidade”.
Conversa fiada, demonstrou o grande Heráclito Fontoura Sobral Pinto num trecho de numa carta escrita em outubro de 1944 (veja post na seção Vale Reprise):
“O primeiro e mais fundamental dever do advogado é ser o juiz inicial da causa que lhe levam para patrocinar.
Incumbe-lhe, antes de tudo, examinar minuciosamente a hipótese para ver se ela é realmente defensável em face dos preceitos da justiça.
Só depois de que eu me convenço de que a justiça está com a parte que me procura é que me ponho à sua disposição”.
No artigo, Márcio Thomaz Bastos sustenta que todos os clientes e causas merecem o mesmo tratamento.
Assim, vale tudo para absolver tanto um ladrocida compulsivo quanto de um sacristão engaiolado por ter bebido o vinho do padre.
“Não há exagero na velha máxima: o acusado é sempre um oprimido”, afirma.
“Ao zelar pela independência da defesa técnica, cumprimos não só um dever de consciência, mas princípios que garantem a dignidade do ser humano no processo.
Assim nos mantemos fiéis aos valores que, ao longo da vida, professamos defender.
Cremos ser a melhor maneira de servir ao povo brasileiro e à Constituição livre e democrática de nosso país”.
Quem colocou o gabinete de ministro da Justiça a serviço da quadrilha do mensalão não pode disfarçar-se de guardião do Estado de Direito.
Quem procura enterrar em cova rasa as provas contra Cachoeira, colhidas pela Polícia Federal que chefiou, está convidado a dispensar-se de declarações de amor à democracia.
Sem imaginar como seria o Brasil da segunda década do século seguinte, Sobral Pinto desmoralizou as falácias desfiadas por Márcio:
“A advocacia não se destina à defesa de quaisquer interesses.
Não basta a amizade ou honorários de vulto para que um advogado se sinta justificado diante de sua consciência pelo patrocínio de uma causa.
O advogado não é, assim, um técnico às ordens desta ou daquela pessoa que se dispõe a comparecer à Justiça.
O advogado é, necessariamente, uma consciência escrupulosa ao serviço tão só dos interesses da justiça, incumbindo-lhe, por isto, aconselhar àquelas partes que o procuram a que não discutam aqueles casos nos quais não lhes assiste nenhuma razão”.
Na Folha, o advogado de Cachoeira tortura a verdade: “Aconteceu o mais amplo e sistemático vazamento de escutas confidenciais”, fantasia.
“A pródiga história brasileira dos abusos de poder jamais conheceu publicidade tão opressiva.
Estranhamente, a violação de sigilo não causou indignação.
Dia após dia, apareceram diálogos descontextualizados, compondo um quadro que lançou Carlos Augusto na fogueira do ódio generalizado.
Trocou-se o valor constitucional da presunção de inocência pela intolerância do apedrejamento moral”.
Tradução da discurseira em juridiquês: a culpa é da imprensa, responsável pelo que o articulista define como “publicidade opressiva”.
A expressão foi inaugurada na entrevista à Band em que o doutor acusou a imprensa de ter tomado partido no caso do mensalão.
O bando liderado por José Dirceu nada fez de errado, explicou o entrevistado. Só será punida se os ministros do STF cederem à “publicidade opressiva” produzida por jornalistas que insistem em ver as coisas como as coisas são.
Na carta, o jurista admirável coloca em frangalhos, com quase 70 anos de antecedência, a tese forjada para justificar a parceria entre márcios e cachoeiras:
“É indispensável que os clientes procurem o advogado de suas preferências como um homem de bem a quem se vai pedir conselho.
Orientada neste sentido, a advocacia é, nos países moralizados, um elemento de ordem e um dos mais eficientes instrumentos de realização do bem comum da sociedade”.
Desde 2005, quando o mensalão o induziu a excluir valores éticos dos critérios que determinam a aceitação de uma causa, o espetáculo tristonho se repete: sempre que Márcio Thomaz Bastos triunfa num tribunal, a Justiça é derrotada e a verdade morre outra vez.
Gente com culpa no cartório escapa da cadeia, cresce a multidão de brasileiros convencidos de que aqui o crime compensa e ganha consistência a suspeita de que lutar pela aplicação rigorosa da lei é a luta mais vã.
É o que ocorrerá, por exemplo, se os argumentos invocados pelo ex-ministro forem acolhidos pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região, que designou três desembargadores para julgarem o pedido de habeas corpus impetrado em favor de Cachoeira.
O relator Tourinho Neto já encampou as reivindicações de Márcio.
Votou pela soltura do meliante, preso desde 29 de fevereiro, e considerou ilegal a escuta telefônica feita por agentes da Polícia Federal durante a Operação Monte Carlo.
Falta apenas um voto para a consumação da ignomínia.
Todo acusado, insista-se, tem direito a um advogado de defesa.
Mas doutor nenhum tem o direito de mentir para livrar de punições o acusado de crimes que comprovadamente cometeu.
O advogado, resumiu Sobral Pinto, é o juiz inicial da causa.
Não pode agir como comparsa.
* Augusto Nunes

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