Marco Antonio Spinelli *
Ontem, finalmente, tive um dia inteiro de atendimento on-line, na minha casa. Alguém poderia perguntar, aí, do outro lado da tela: “Spinelli, você está um pouco atrasado? Ou está requentando um texto antigo”?
Nem uma coisa nem outra. Antes da Pandemia, o atendimento on-line já era uma realidade. Já tinha clientes em Londres, Califórnia, Portugal. Durante a Pandemia, meu atendimento on-line se expandiu, mas aproveitei a condição de médico para atender presencialmente no meu consultório, que fica numa casinha, o que impediu também o uso de elevadores e o espaço mais restrito de um consultório em um conjunto. Quem topava vir, era álcool gel, máscaras e consulta presencial. Mas o atendimento remoto tornou-se, na marra, uma realidade.
A mescla de atendimento presencial e on-line permitiu ampliar atendimentos em uma cidade em que o deslocamento está ficando cada vez mais difícil, como São Paulo, ou atender pessoas da Grande São Paulo ou do interior. Além de uma pequena clientela em Portugal. O que eu prefiro? A consulta presencial, com certeza. A avaliação clínica é muito mais rica. A tarefa agora é aprimorar a consulta à distância, mas isso não é o assunto desse artigo. O assunto é a mudança da temporalidade que vivemos hoje.
Depois de um dia de atendimento à distância, pude começar mais cedo e terminar mais cedo. Economizei duas horas de deslocamento. Reservei poucas horas para estudar depois. Um livro que está na minha cabeceira há algumas semanas. Meu tempo interno se expande, o texto entra nessa forma de leitura, saboreando como o autor estrutura suas ideias. Até o celular vibrar, com alguém pedindo receita ou esclarecendo uma dúvida. Respondo (o que já é um erro: interromper uma atividade para responder ao WhatsApp), e dou uma passada na minha Rede Social (só tenho uma). Teclo uns coraçõezinhos de “Gostei” para comentários do último Reels que lançamos. Vejo vídeos pequenos. Pulo para pesquisar algum tema que me chamou a atenção. Pronto. Acabou a temporalidade gerada pela leitura, que eu chamaria de uma leitura gourmet, onde as ideias de encadeiam e são degustadas, pela leitura frenética e o engolir de imagens, ideias, gags e bombardeio de estímulos do “scrolling”, o deslizar desses vídeos, postagens, dancinhas e meninas de biquíni ou caras marombados que vem nessa velocidade estonteante do digital. Pronto. Trocamos a leitura gourmet, onde a leitura vai construindo e sedimentando conceitos, pelo hiperestímulo, onde os conceitos são engolidos diretamente, sem passar pelo julgamento. Como engolir um monte de comida lixo sem mastigar, sem sentir o gosto do que deveria ser alimento.
Abolimos nosso Córtex Pré Frontal, nossa Insula e nosso Cortex Cingulado Anterior, que filtram, distribuem e categorizam a informação que chega ao nosso Cérebro Racional; e deixamos nosso Cérebro Emocional ou Límbico mais superestimulado, com as consequências que vemos por aí: ansiedade, irritabilidade, desregulação emocional, esgotamento.
Apesar de termos à nossa disposição um conhecimento mais profundo desses mecanismos com os saltos que a Neurociência, a Neurogenômica e a Psiquiatria experimentaram desde o final do século passado, não desenvolvemos ainda um antídoto para essa mudança de nossa temporalidade, que chacoalha e bagunça nossos relógios biológicos e nossa Saúde Mental.
Chegamos agora, nesse texto, a cerca de quinhentas e quarenta palavras. Se os queridos leitores chegaram até esse ponto, parabéns. Se o texto serviu para a vossa reflexão, melhor ainda. Porque, enquanto está lendo no seu computador, por exemplo, seu celular está popando mensagens, alguém está falando ao fundo, talvez tenha música ou uma TV ligada. Tudo tenta te chamar a atenção e tudo parece urgente. Ler devagar, refletir, dialogar e, sobretudo, ouvir o que o outro tem a dizer, virou um luxo e uma capacidade que pode estar entrando em extinção nessa selva de estímulos frenéticos e contínuos.
Espero que o atendimento on-line crie um espaço de escuta das angústias das pessoas e um restabelecimento da capacidade de entender, antes de julgar, o que está sendo dito pela outra pessoa. Talvez esteja na hora de se criar ilhas de uma temporalidade não digital, confiscando celulares antes das aulas, nas reuniões e nas mesas de jantar. As conversas devem ser protegidas, como animais em extinção.
Eu, de minha parte, voltei para meu livro. E foi bom.
Obrigado a você, que chegou até o final desse texto. Espero que tenha degustado a leitura. Mas cuidado. Você é um leitor, ou leitora, em extinção.
*Marco Antonio Spinelli é médico, com mestrado em psiquiatria pela Universidade São Paulo, psicoterapeuta de orientação junguiana e autor do livro “Stress o coelho de Alice tem sempre muita pressa”
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