A varíola, por exemplo, fez 300 milhões de vítimas no século 20
Agência Brasil**Fernando Frazão/Agência Brasil
A dor crônica na perna direita foi um tormento na vida da pintora Frida Kahlo, um dos maiores nomes das artes plásticas da América Latina. Infectada pelo poliovírus aos 6 anos, a mexicana teve que conviver toda a vida com as sequelas da poliomielite, que deixaram a perna atrofiada, mais fina e curta que a outra.
Acometido pelo mesmo vírus, o jornalista Boris Casoy só começou a andar aos 9 anos de idade, depois de uma cirurgia feita nos Estados Unidos para tratar sequelas causadas pela poliomielite. O compositor canadense Neil Young também precisou reaprender a andar após se recuperar de um quadro da doença, que quase o levou à morte.
Histórias como essas só se tornaram raras devido à vacinação contra a poliomielite. A imunização avançou com mais força na segunda metade do século 20. Antes que isso acontecesse, a doença paralisava mil crianças por dia no mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde –
por isso passou a ser temida e mais conhecida com o nome de paralisia infantil.
Especialista em vacinas e integrante da Comissão Permanente de Assessoramento em Imunizações do Estado de São Paulo, o médico Guido Levi explica que há um consenso internacional de que as vacinas foram o fator de maior impacto na saúde humana nos últimos anos, sendo tão importantes quanto o acesso ao saneamento básico e à água potável.
“Calcula-se que, no mundo todo, nos últimos 200 anos, a vacinas seriam responsáveis por um aumento médio de 30 anos no tempo de vida das pessoas. No Brasil, isso ocorreu em um período muito mais curto e mais recente. No início da década de 1970, o tempo de vida médio da nossa população era de 45 anos. Hoje, é mais de 75 anos. O principal fator para isso foi a criação do Programa Nacional de Imunizações [PNI], em 1973”, afirma.
“Todos que temos mais idade ou estudamos esse período vimos crianças com muletas, pernas mecânicas ou coisas piores. Quando a doença acometia os nervos que controlavam a respiração, a criança ia para um pulmão de aço, uma máquina que fazia sua respiração artificialmente. E, lá, elas entravam para ficar o resto da vida. Visitei uma enfermaria de pulmão de aço e foi uma das coisas mais chocantes que aconteceram na minha carreira profissional.”
Varíola erradicada
A poliomielite é um dos casos mais emblemáticos dessa transformação, mas não foi o primeiro. Em 1980, as vacinas levaram a humanidade a erradicar a varíola, enfermidade responsável por milhões de mortes e associada a crises sanitárias ao longo da história, como a epidemia que culminou na Revolta da Vacina, no Brasil. Para se ter uma ideia da gravidade da varíola, é preciso destacar que a doença fez 300 milhões de vítimas apenas no século 20. A dimensão desse número supera as mortes causadas pelas duas guerras mundiais e o Holocausto nazista, além de diferentes estimativas de vítimas da colonização europeia na América.
A coordenadora da Assessoria Clínica do
Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos da Fundação Oswaldo Cruz (Bio-Manguinhos/Fiocruz), Lurdinha Maia, destaca que erradicar uma doença como essa é a maior prova dos benefícios da vacinação. “A importância da vacinação na idade certa e no tempo adequado tem como maior exemplo não termos mais a varíola no mundo inteiro. Essa é uma doença terrível, que dizimou a população mundial. Quando a gente fala de pólio, o último caso no Brasil foi em 1989, em Souza, na Bahia. E o último caso nas Américas foi em 1994. Infelizmente tivemos agora um caso no Peru. Isso deixa em alerta todos os países vizinhos.”
A história das vacinas e a história da varíola se misturam, uma vez que o primeiro imunizante do mundo foi desenvolvido para prevenir contra essa doença. O inglês Edward Jenner, no século 18, inventou a primeira vacina na tentativa de conter a varíola, e conseguiu amenizar os casos graves em pacientes vacinados. As primeiras epidemias de varíola foram oficialmente registradas na Europa durante a Idade Média, no século 10. Cientistas investigam, porém, vestígios muito anteriores que indicam possibilidades de casos no Antigo Egito, nas Cruzadas e navegações vikings.
No Brasil, a história da doença está relacionada à colonização, e o primeiro surto registrado de varíola ocorreu em meados de 1555, quando a enfermidade foi introduzida no Maranhão por colonos franceses. O tráfico de africanos escravizados e a imigração portuguesa também causaram surtos no país, do litoral para o interior. A eliminação da doença no Brasil
é anterior à criação do PNI, e se deu em 1971, seis anos antes do último surto no mundo, registrado em 1977, na Somália. Em 2023, o programa completa 50 anos.
Vitória contra a pólio
No Brasil, as campanhas contra a doença ganharam força na década de 1980, e o último caso registrado foi em 1989. Pesquisador de
Bio-Manguinhos/Fiocruz
desde a década de 1960, Akira Homma participou do trabalho de estruturar a produção das vacinas contra a poliomielite no Brasil, decisivo para que a doença fosse erradicada.
Homma integrou, como técnico, os primeiros testes da vacina oral contra a poliomielite no país, na década de 1960, no Instituto Adolfo Lutz, e ajudou a organizar o laboratório de virologia quando entrou na Fiocruz, em 1968, participando do isolamento e caracterização do vírus da pólio.
Após experiências no exterior, Homma chegou à direção de Bio-Manguinhos nas décadas de 1970 e 1980, quando a produção da vacina oral no Brasil foi de fato estruturada.
Ele destaca que fabricar a vacina no país foi de extrema importância, mas a mobilização social para que as vacinas chegassem às crianças na época, por meio dos dias nacionais de Vacinação, também teve um papel central.
“O governo federal possibilitou a adesão de todos os ministérios à campanha, e também toda a sociedade brasileira foi envolvida nesse processo. Houve uma motivação muito grande da sociedade e até da iniciativa privada. Houve a participação de milhares de voluntários, e também a mídia explicando o papel da vacinação. Em 1980, tínhamos 1.290 casos de poliomielite. Em 1981, caiu para 122. Em 1982, para 42 casos. E, em 1989, acontece o último caso. Esse é o impacto de altas coberturas vacinais. Em um dia se conseguia vacinar 18 milhões de crianças.”
Apesar da vitória nacional contra a doença no passado, a poliomielite ainda existe de forma endêmica no Afeganistão e no Paquistão, e teve casos pontuais registrados recentemente no continente africano, nos Estados Unidos, em Israel e no Peru.
Tétano materno e neonatal