*Por João Pedro de Oliveira de Biazi
No segundo semestre de 2018, o Superior Tribunal de Justiça realizou audiência pública para enfrentar o tema da inversão de cláusula penal em desfavor das incorporadoras construtoras, na hipótese de inadimplemento por atraso na entrega de imóvel. Em consequência deste debate, todos os processos individuais ou coletivos que discutem o tema encontram-se suspensos e aguardam uma definição final do Tribunal.
Em apertada síntese, a controvérsia jurídica pode ser exposta da seguinte forma: na elaboração de contratos definitivos ou promessas de compra e venda de imóveis em construção, é comum haver a previsão de uma multa contratual contra o comprador, na hipótese de atraso no pagamento das parcelas correspondentes ao valor do imóvel. Entretanto, caso a incorporadora construtora atrase na entrega da obra finalizada, não se verifica qualquer prefixação de danos em desfavor da incorporadora construtora.
Questiona-se, então, se a multa contratual, prevista para o descumprimento do comprador, pode também ser aplicada para os casos de descumprimento da construtora.
A resposta para este questionamento demanda um profundo recurso ao estudo e leitura da legislação brasileira. Não por outro motivo que o Superior Tribunal de Justiça convocou audiência pública: é preciso discutir o tema com técnica e base em lei. Ocorre que, preservada a análise rigorosa das normas e categorias jurídicas do direito brasileiro, a conclusão a que se chega é que o nosso direito não admite qualquer hipótese de inversão de cláusula penal. A impossibilidade da inversão se impõe por três razões principais.
A primeira razão advém da própria concepção e natureza jurídica da cláusula penal. A cláusula penal é um elemento acessório inserido nos contratos para deixar, já predeterminado, o valor das perdas e danos causados pelo descumprimento. Sua função principal, portanto, é muito simples: prefixar as consequências de uma determinada hipótese de descumprimento. A cláusula penal, assim, evita a necessidade de se provar ou quantificar o dano sofrido quando o inadimplemento acontece. Afinal, ele já foi predeterminado anteriormente pela cláusula. Aqui, destaca-se uma importante característica da cláusula penal: ela não é responsável por criar a obrigação de indenizar em caso de inadimplemento, mas tão somente prefixar o valor desta obrigação, não retirando do comprador do imóvel qualquer direito de postular reparação de danos pelo atraso na entrega da obra.
A segunda razão gira em torno da função desempenhada pela cláusula penal que prefixa o dano, sofrido pela incorporadora construtora, na hipótese de atraso no pagamento das parcelas pelo comprador. Afinal, a hipótese de inadimplemento desta cláusula cuida de descumprimento de obrigação de dar – no caso, dar determinada soma em dinheiro correspondente à contraprestação do comprador. Se a inversão fosse permitida, a cláusula penal – pensada e criada para cuidar de inadimplemento de obrigação de dar – seria aplicada à obrigação de fazer da empresa incorporadora construtora – no caso, construir a obra. Tendo em vista que a cláusula penal se destina a prefixar danos para hipóteses de inadimplemento determinadas contratualmente, o nosso sistema jurídico não permite a transposição da prefixação de danos de certa hipótese (pagar o preço) para outra completamente diferente (fazer a obra).
A terceira razão é, talvez, a mais eloquente de todas. O nosso sistema jurídico não apresenta a inversão de cláusula penal como remédio contra uma situação abusiva enfrentada pelo comprador. O Código Civil aponta que o valor da multa contratual não poderá exceder o da obrigação principal. Se isso acontecer, deve o juiz ou o árbitro reduzir o excesso quando requerido pela parte prejudicada. Há também a redução por equidade do valor da cláusula penal, operada pelo julgador nas hipóteses de cumprimento parcial da obrigação ou quando a multa estipulada é manifestamente excessiva.
Já o Código de Defesa do Consumidor, aplicável em muitos casos de compra ou promessa de compra e venda de imóveis em construção, aponta que as cláusulas abusivas devem ser nulas. Em específico sobre as multas de mora decorrentes do inadimplemento de obrigações, caso das multas contratuais pelo atraso do pagamento do comprador, estabelece o Código de Defesa do Consumidor que tais multas não poderão ser superiores a 2% do valor da prestação.
A análise da lei aponta que o nosso sistema jurídico já fez opções claras sobre o que deve acontecer às cláusulas penais problemáticas. Se a cláusula penal estabelece multa contratual de qualquer forma abusiva ou de forma a extrapolar os critérios apontados pela nossa legislação, esta cláusula será nula ou terá seus efeitos mitigados. A cláusula penal inserida em contratos ou promessas de compra e venda de imóveis em construção não escapa desta regra: se for de alguma forma patológica, será nula ou terá eficácia prejudicada.
Não é a inversão, portanto, o efeito da abusividade ou desproporção da cláusula penal. O efeito escolhido pelo sistema jurídico brasileiro é a invalidade da cláusula ou a redução dos seus efeitos. Salvo nas hipóteses em que se julga por equidade, as decisões judiciais ou arbitrais devem respeitar com exatidão os limites e critérios de aplicação das categorias jurídicas. As fronteiras impostas por estes modelos impedem saltos inseguros e distantes da nossa técnica. É inegável que soluções inovadoras são sempre necessárias no cotidiano do direito privado. É papel de toda a comunidade jurídica, entretanto, construir essas novidades a partir de um diálogo direto com o nosso sistema.
*João Pedro Biazi é advogado, especialista em Direito Civil, sócio da Biazi Advogados Associados e fundador da Welt Cursos Jurídicos. E-mail: jbiazi@biazi.adv.br
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