Editorial, Estadão
Faz nada menos que 16 anos, ou 4 legislaturas, que deputados estaduais em pelo menos 16 Estados são ou foram investigados por suspeitas de desviar salários e benefícios de servidores das Assembleias Legislativas, conforme mostrou reportagem recente do Estado. A prática é tão corriqueira que é até conhecida nesse meio por “rachid”, em alusão ao fato de que os funcionários “racham” seu salário com os parlamentares que os empregam.
Ou seja, não há nenhuma novidade nesse expediente indecente, que só ganhou notoriedade nos últimos dias em razão do caso envolvendo um dos filhos do presidente Jair Bolsonaro, o ex-deputado estadual do Rio de Janeiro e senador eleito Flávio Bolsonaro. Assim, a chegada ao poder de legítimos representantes do baixo clero, como a família Bolsonaro e seus apoiadores, está permitindo aos brasileiros conhecer em detalhes o mundo todo peculiar da arraia-miúda política, que antes operava suas bagatelas sem atrair as atenções.
Só no caso da Assembleia do Rio há procedimentos criminais abertos desde o ano passado para apurar suspeitas de irregularidades envolvendo os gabinetes de 22 dos 70 deputados. Um desses inquéritos diz respeito a Fabrício Queiroz, um modesto ex-assessor de Flávio Bolsonaro, cuja milionária movimentação bancária foi considerada “atípica” pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf).
Fossem outros tempos, muito provavelmente essas suspeitas seriam relegadas ao rodapé do noticiário, por sua tediosa recorrência e por seu limitado alcance. Contudo, alguns dos personagens envolvidos no caso – a começar pela prole do presidente da República – estão hoje no primeiro plano da política nacional, e elegeram-se prometendo moralizar a vida política do País, razão pela qual são pressionados a dar explicações. E até agora essas explicações, em vez de esclarecer qualquer coisa, têm servido mais para confirmar que nos gabinetes de muitos deputados estaduais, entre um projeto de lei e outro, realiza-se todo tipo de rolo.
Fabrício Queiroz, por exemplo, disse ser “um cara de negócios” e que o dinheiro que passou por sua conta – pelo menos R$ 1,2 milhão, mas há informações de que esse valor pode chegar a R$ 7 milhões – diz respeito à compra e venda de carros usados – o próprio presidente Jair Bolsonaro qualificou de “rolo” a suposta atividade comercial de Queiroz. Já o ex-deputado e agora senador Flávio Bolsonaro argumenta que os quase R$ 100 mil depositados em sua conta em dinheiro vivo, de maneira fracionada, no caixa eletrônico da Assembleia do Rio, resultaram da venda de um de seus imóveis, em circunstâncias ainda obscuras.
De um modo geral, a criatividade tem sido uma marca dos arranjos de parlamentares nos Legislativos federal, estaduais e municipais. Para aumentar sua renda à custa das verbas de gabinete, vale tudo. Segundo as investigações, um deputado estadual da Paraíba, por exemplo, contratou a própria empregada doméstica como funcionária fantasma, retendo todo o salário dela entre 2003 e 2009.
Num caso semelhante, e mal explicado durante a campanha eleitoral, o presidente Jair Bolsonaro, quando ainda era deputado federal, manteve como assessora uma funcionária que na verdade trabalhava em uma barraca de açaí em Angra dos Reis (RJ), a quase 900 km do gabinete onde tinha que dar expediente oito horas por dia.
O baixo clero já legou ao País momentos constrangedores, como a eleição do obscuro Severino Cavalcanti para a presidência da Câmara dos Deputados, em 2005. À vontade, o deputado cobrou do então presidente Lula a indicação de um afilhado para a “diretoria que fura poço” na Petrobrás. Cavalcanti renunciou ao mandato ao ser acusado de cobrar propina do restaurante da Câmara – o que bem caracteriza os parlamentares que não representam nada além de si mesmos.
Agora, depois de alcançar retumbante vitória eleitoral, especialmente graças à desmoralização generalizada da política, o baixo clero não precisou nem de duas semanas de poder para confirmar sua natureza caricatural e medíocre.
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