Quem nunca teve a oportunidade de presenciar alguém ser zombado e, muitas vezes, humilhado por alguma particularidade intolerada ou desrespeitada pelo outro?
Brincadeiras e piadinhas maldosas são comuns em muitos grupos sociais. Comentários depreciativos direcionados a uma pessoa pela sua estrutura física, condição social, religiosidade, vestuário ou rendimento escolar, dentre outras situações, costumam ser bastante comuns.
No entanto, o descontrole da “brincadeira” pode ser arriscado, principalmente, quando tende a se tornar uma agressão. Isso, porque as ações extrapolam limites e acabam gerando constrangimentos que podem desencadear consequências tanto para a vítima quanto para o autor.
Essa situação, conhecida como bullying, é acompanhada e debatida pela psicologia. A expressão, de origem inglesa, vem da palavra ‘bully’ e significa valentão ou brigão, mas não tem correspondência em português. A temática reúne alguns episódios emblemáticos e voltou a ganhar repercussão, no Brasil, na semana passada.
No último dia 20 de outubro, um adolescente, de 14 anos, disparou tiros de arma de fogo contra colegas em uma escola particular da cidade de Goiânia. Segundo investigações da polícia, ele estava sendo alvo de piadas maldosas. O adolescente era chamado de “fedorento” e “sujo”, porque não usaria desodorante.
A ação do menor resultou na morte de dois colegas. Além destes, mais quatro estudantes ficaram feridos. Entre eles, uma garota, que ficou paraplégica. O infrator disse ao delegado que foi motivado por bullying e afirmou ter se inspirado nos casos da escola de Columbine (ocorrido em 1999, nos Estados Unidos), e de Realengo (em 2011, no Rio de Janeiro).
Colégio Goyases, em Goiânia, instituição onde ocorrências de bullying terminaram em tragédia. Foto: Reprodução / Internet
Os especialistas definem o bullying como qualquer ato de violência física ou psíquica que seja repetitivo, praticado, tanto por um indivíduo, quanto por um grupo, e que gera trauma ou algum tipo de drama a uma pessoa.
Por definição, a prática pertence a um universo amplo, mas o ambiente escolar é o que registra o maior número de ocorrências. Em entrevista ao Aratu Online, a psicoterapeuta, Tatiane Seixas, explicou que isso se dá porque é na escola que acontecem as primeiras relações sociais da criança. “É o local onde os vínculos delas começam a ficar mais fortes e onde iniciam a experiência de um convívio diferenciado”.
Na mesma linha de pensamento, o professor de Psicologia e, também, psicoterapeuta, Danilo da Cruz, complementou. Segundo ele, a grande frequência do bullying entre jovens, em idade escolar, é, em parte, por conta da construção de identidade comum a essa faixa etária, quando a agressividade pode ser valorizada na tentativa de construção da autonomia.
CONSEQUÊNCIAS
Os especialistas chamam a atenção para os danos que isso pode causar aos adolescentes, já que ficam propensos a uma gama de enfermidades, quando a prática não é interrompida. De acordo com Tatiane Seixas, eles estão sujeitos a adquirirem doenças psíquicas como depressões, que podem evoluir para casos de suicídio.
“Se os pais começarem a perceber que o filho está apresentando um comportamento diferente, relacionado com um isolamento social muito forte, sintomas de agressividade e intolerância, devem chamá-lo, logo, para conversar e tentar saber o que está acontecendo”, enfatizou.
O professor Danilo foi mais além e advertiu que a agressividade das vítimas podem não se resumir, apenas, à natureza autolesiva, como o suicídio, mas o agredido pode também se tornar agressor, cometendo bullying, junto a outros colegas, e até recorrer a atuações homicidas em resposta à opressão, como se verificou na escola goiana.
PRÁTICA ANTIGA
Obviamente que a prática do bullying não é uma novidade. Gerações passadas, também, conviveram com situações semelhantes durante o processo de formação da personalidade. Entretanto, Seixas e Cruz, ressaltam que nos últimos anos, a relevância do tema foi ampliada e o assunto passou a ser discutido por uma diversidade maior de pessoas.
De acordo com o professor, anteriormente, o bullying era um fenômeno naturalizado, tido como algo normal e, hoje, graças ao implemento dos meios de comunicação, é amplamente divulgado e correlacionado com tragédias. “Por isso, choca tanto, trazendo crescente visibilidade à necessidade de sua prevenção”, disse.
A psicoterapeuta lembrou que, antes, as famosas piadinhas e brincadeiras desagradáveis eram encaradas de forma harmônica por algumas pessoas, mas por outras, nem tanto. “Tinham aqueles grupos que não reagiam bem a isso, daí as pessoas adoeciam e não sabiam, exatamente, a causa. Atualmente, as redes sociais têm um papel muito forte e os oprimidos estão aprendendo a se defender, quando sofrem algum tipo de perseguição”, explicou a psicóloga.
Para Tatiane Seixas, essas ocorrências são possíveis, porque as pessoas não costumam observar a percepção do outro. “É preciso entender que nós somos diferentes. O que pode parecer muito pequeno pra mim, pode ser muito pesado para o outro. Uma simples piadinha de “gordinha” pode ser muito ofensivo”, frisou, acrescentando que uma “brincadeirinha” com conotação pejorativa, muitas vezes, recorda traumas antigos que faz a pessoa se sentir fragilizada e até mesmo marginalizada.
Especialistas advertem aos pais para que se atenham a sinais de mudanças no comportamento de seus filhos.
PERFIL DO AGRESSOR
Os psicólogos relataram ao Aratu Online que, normalmente, quem pratica o bullying tem uma história de vida sofrida, possivelmente, já foi oprimido e possui alguma agressividade. “Normalmente, o agressor tem um contexto histórico de vida que ele justifica dessa forma. É como se ele tivesse respondendo a situações passadas”, explicou a psicoterapeuta.
O professor Danilo informou que os alvos dos agressores tendem a ter características semelhantes, entre si. “Geralmente, são pessoas introvertidas, com autoestima baixa e pouca reatividade. É comum, também, ter características significativamente diferentes da maioria dos pares envolvidos”, disse, se referindo, não só a quem agride, mas também, a quem assiste à cena.
Com relação a esse expectador, Danilo pontua que ele comumente oferece a plateia buscada pelo agressor, mantendo, dessa forma, a repetição do ato, devido à negligência e omissão. “É comum também que o expectador tenha medo de ser alvo de agressões, caso tome partido”, acrescentou.
INICIATIVAS CONTRA O BULLYING
Os psicoterapeutas são, outra vez, unânimes, quando o assunto é promover formas de alertar a sociedade para os riscos do bullying. “É preciso ter campanhas de conscientização nas escolas e conversar sobre o assunto, não de modo agressivo, mas sim mostrando as consequências de uma forma bacana sem grande alardes” enfatizou Tatiane.
Para o professor, falar abertamente sobre o tema tende a incentivar as vítimas a pedirem ajuda. “Intervenções afirmativas que fomentem a colaboração em detrimento da competição, que desvirtuem a impunidade, que estimulem o respeito à diversidade, a apreciação da alteridade e a ampliação da empatia e da responsabilidade mútua tendem a construir uma cultura escolar onde o bullying não faz sentido”, concluiu.
A QUESTÃO JURÍDICA DO BULLYING
Segundo o criminalista Marcos Melo, práticas de bullying apresentam características de injúria. Foto Dinaldo dos Santos/Aratu Online
Apesar da ocorrência de muitos desfechos trágicos, por conta da pática do bullying, a situação não está prevista no Código Penal brasileiro. De acordo com o criminalista Marcos Melo, as suas consequências, sim, são tratadas juridicamente, conforme o tipo de crime em que se enquadram, podendo variar em uma agressão física, lesão corporal, homicídio e até o suicídio.
O advogado adverte que a atitude é de provocação e menosprezo contra a pessoa. Ele ressaltou que o bullying é cometido com a intenção de depreciar e, portanto, algumas de suas práticas podem serem identificadas como injúria, que é um um tipo de crime contra a honra.
Segundo Marcos Melo, em caso de suicídio deve ser feita uma investigação para saber se a situação se caracteriza no artigo 122 do Código Penal, que faz referência ao induzimento, instigação ou auxílio ao crime contra a própria vida. “No entanto, é uma situação muito complicada de se comprovar”, considerou. G1