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domingo, 22 de dezembro de 2019

O PIÃO DE CORDA

Por Humberto Pinho da Silva 
Nesta tarde cinzenta e chuvosa de Dezembro, ao reler Azorin ( Las Confissiones de um Pequeño Filósofo,) ao chegar ao emocionante trecho, evocador do livrinho, que recebera em criança; livrinho, que era seu encanto, e o trazia, em recato, no bolsito, até que, um dia, o professor, descobriu-o… e desapareceu para sempre… 

Azorin, já famoso escritor, recorda, com infinita saudade, o livro “encantado”, que sumira…arrebatado, bruscamente, pela mão do mestre. 

Este trecho emocionante, evocador dos anos de infância, fez-me recordar a comovente cena, passada há muito e muitos anos: 

Eu tinha um chefe, o Sr. Nunes, que era conhecido, pelos neófitos da firma, como a “ Fera”. Andava sempre zangado, carrancudo, pronto a ralhar. 

Uma manhã, cor de lousa, também de Dezembro. Dezembro sombrio, estava em conversa, com colega, já idosa, D. Laura Cunha, quando esta me confidenciou: 

- “Quer amansar a “Fera” ‘É simples: ofereça-lhe um pião de corda…” 

Dito e feito. Era pelo Natal. Comprei um pião de corda. Embrulhei-o em papel de seda e cobriu-o com outro, brilhante, com desenhos natalícios. 

Esperei a saída de todos, do local de trabalho, e acompanhado da colega, entreguei-o, receoso da reação. 

Olhou-me surpreso. Recusou-o; estendendo a mão direita, espalmada, num gesto de total reprovação. 

Depois…rasgou o papel, lentamente… e começou a dar corda… 

O pião girou…girou…girou sobre a velha mesa de madeira, e os olhos da “Fera”, humedeceram-se de saudosa alegria. De voz profunda e embargada, com grossas bagadas deslizando pelas faces morenas, sulcadas de leves rugas, pronunciou com palavras trancadas na garganta: 

“ - Quando eu era garotinho, desejei ardentemente ter um pião de corda. Pedi…Pedi…Pedi…Fiz beicinho…Bati o pé…mas ninguém mo deu… 

- “ Os meninos ricos, brincavam com um de folha litografada…Olhava-os invejoso, de olhos aguados… 

-” Ainda agora, quando passo na Rua Sá da Bandeira e os vejo, nos dois bazares, fico a olhar…e lembro-me dos tempos tristes de menino pobre, das Fontainhas…” 

A “Fera”, não só ficou mais mansa, como passou a ser meu amigo e protector. 

Tudo por causa de um simples pião de corda…

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