Quem acha que a corrupção é “coisa nossa” ficará surpreso com a história. Nos EUA rolou um festival de desvio de dinheiro público de dar inveja a PCs, Valérios e Youssefs
HELIO GUROVITZ/http://epoca.globo.com - A presidente Dilma Rousseff anunciou neste mês um retumbante plano de infraestrutura para o Brasil, com investimentos de quase R$ 200 bilhões. Serão R$ 70 bilhões no governo dela, em concessões de estradas, aeroportos e linhas de trem. O resto do dinheiro só sairá depois de 2018, para uma obra construída com ajuda dos chineses, uma certa “Ferrovia Transoceânica”. A ideia é atravessar Amazônia, Cordilheira dos Andes e chegar ao Peru, de onde produtos brasileiros estarão mais perto da Ásia. Para operar a façanha, o governo estima atrair uma dinheirama que faz empreiteiro salivar. Imaginem quantos aditivos, créditos camaradas do BNDES – daqueles que a gente olha e fala: “Também quero!” – e exigências de conteúdo nacional não devem rolar num negócio desses. Deve dar para comprar o Legislativo, um bom pedaço do Judiciário e ainda financiar aqueles partidos que ainda aceitem receber dinheiro de empresas. Enquanto a tal “Transoceânica” não vem, os reis da empreitada com o nosso dinheiro, alguns lá na cadeia mesmo, podem aproveitar para ler e aprender um pouco sobre a construção de outra ferrovia que ligou o Atlântico ao Pacífico – a Transpacific Railway, construída nos Estados Unidos na segunda metade do século XIX.
Quem acha que a corrupção é “coisa nossa” ficará surpreso com a história. Nos Estados Unidos – quem diria? – rolou um festival de desvio de dinheiro público de dar inveja a PCs, Valérios, Youssefs e a uma meia dúzia de ex-diretores da Petrobras. Um escândalo envolvendo a Union Pacific, contratada para construir a ferrovia, e sua subsidiária Crédit Mobilier, estourou em 1872, graças a um furo de reportagem do jornal The Sun. Atingiu executivos, oito senadores, uns 30 deputados e até o vice-presidente Schuyler Colfax. A carreira de alguns políticos foi arruinada, mas um dos deputados, depois de se livrar das acusações, tornou-se o presidente James Garfield. Não foi só ele quem se safou. No fim, o líder da falcatrua escapou apenas com uma censura do Congresso. Essa história é um caso exemplar do risco da proximidade entre empresários e o governo, conhecida em inglês como “crony capitalism”, algo como “capitalismo de compadres”. Era uma prática corrente no final do século XIX, época chamada de Era Dourada, em que os Estados Unidos deixaram de ser uma economia agrária para tornar-se uma potência industrial e financeira, com rede de trens e vapores, domínio sobre aço, petróleo, carvão e produção em massa de mercadorias.
Os empresários desse período ficaram conhecidos coletivamente como “barões ladrões”, ou “robber barons” em inglês. Eram descritos como homens agressivos, sem princípios morais, em tudo similares aos barões feudais que cobravam pedágios ilegais na Idade Média. Os livros de história tradicionais incluem no grupo nomes como Cornelius Vanderbilt, Leland Stanford, John Jacob Astor, Andrew Carnegie, Edward Harriman, Jay Gould, Andrew Mellon, J.P. Morgan, Thomas Durant (o artífice do escândalo Crédit Mobilier) e – o mais famoso – John D. Rockefeller. Todos são vistos como cruéis monopolistas, que viviam à custa de subsídios e privilégios concedidos pelo Estado; como obcecados pelo livre mercado e pela eficiência técnica, mas insensíveis diante do sofrimento causado pelas condições de trabalho que criavam; como donos de um apetite incontrolável pelo lucro, do qual derivaram tantos desastres, tanto ultraje e tanta miséria.
Essa visão, consolidada no início do século XX, está longe de captar as nuances na trajetória deles. Num livrinho apaixonante, The myth of the robber barons, o historiador Burton Folsom distingue dois tipos de empresário na Era Dourada: empreendedores políticos e empreendedores de mercado. Os primeiros – nomes como Stanford, Gould e Durant – podem, como quer a visão consagrada, ser classificados como “barões ladrões”. Eles se beneficiaram de subsídios, favoritismo, monopólios ou direitos concedidos pelo Estado à força de lobby, relações promíscuas e práticas corruptas. O segundo tipo de empreendedor – grupo em que Folsom inclui Carnegie, Vanderbilt e Rockefeller – procurava manter negócios que crescessem por seus próprios méritos e dispensassem a ajuda do governo. Folsom atribui a eles, preocupados em cortar custos, melhorar a qualidade dos produtos e baixar os preços, o sucesso da economia americana. Sem um centavo de dinheiro público, Vanderbilt ergueu uma linha de navios a vapor com a passagem mais barata e maior eficiência. Sem um centavo de dinheiro público, Carnegie produzia o aço de menor preço e maior qualidade. Sem um centavo de dinheiro público, Rockefeller mantinha um preço imbatível, a ponto de vencer a competição renhida com a Rússia pelo mercado mundial de petróleo. Em 1911, sua empresa foi condenada por cartel e quebrada pela Justiça – prova de que nem mesmo um bilionário estava acima da lei. Mas Rockefeller nunca foi parar na cadeia.
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