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terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Saiba o que acontece com a verba pública que deveria chegar aos postos e hospitais

A saúde dos brasileiros é motivo de negociação por baixo dos panos. As propinas começam em 10% e são pagas, claro, com o dinheiro de seus impostos.

Em 2012, o Governo Federal aplicou quase R$ 38 bilhões na saúde dos municípios brasileiros. Só para o atendimento básico, feito nos postos de saúde da família, serão R$ 16 bilhões até o fim deste ano.

Os valores entram direto nas contas das prefeituras. E a maioria dos municípios prefere usar essa verba na contratação de cooperativas médicas e organizações sociais, para que estas se encarreguem do serviço de saúde.
O Fantástico percorreu regiões do interior do Brasil para investigar se esse dinheiro está sendo bem gasto e se a população é atendida como merece.

Repórter: É difícil conseguir atendimento lá no posto?
Damiana: É difícil.
Repórter: A senhora já tentou muitas vezes?
Damiana: Umas quatro vezes e não consegui.
Damiana mora em um povoado do município de Araci, interior da Bahia. Ela precisa mostrar a um médico o eletrocardiograma que fez há quatro meses no hospital da cidade. É uma caminhada de seis quilômetros com o sol a pino até o posto de saúde mais perto de sua casa. Duas horas depois, quando chega ao posto, a decepção de sempre: as fichas de atendimento tinham acabado.

Em Araci, quem cuida da gestão dos profissionais da saúde é uma cooperativa médica.
O objetivo nesse tipo de contratação é evitar a burocracia e agilizar o atendimento médico no país. Quando surge a necessidade de preencher uma vaga, a cooperativa leva um profissional dela para ocupar o lugar. Sem isso, a prefeitura teria que abrir um concurso. O que vamos mostrar nesta reportagem é que o modelo tem falhas. E que muitas vezes elas começam a aparecer já na assinatura dos contratos.

Durante duas semanas, o Fantástico ocupou duas salas de um prédio comercial em Salvador. O repórter Eduardo Faustini se apresentou como um representante de um grupo de prefeituras. Foi assim que ele recebeu diversas propostas irregulares de cooperativas médicas e organizações que atuam na área da saúde. Nenhum negócio foi fechado, mas todas as conversas foram gravadas por câmeras e microfones escondidos.

Para fazer um contrato emergencial, não é preciso fazer concorrência entre cooperativas. Basta convidar uma para assinar o acordo com o gestor público. Isso abre um caminho que alguns usam para fraudar.
Claudia Gomes é diretora da Cooba, Cooperativa Baiana de Saúde, contratada por sete municípios, inclusive Araci.

O repórter pede que a executiva tome por base um hospital com folha salarial de R$ 500 mil e quer saber qual seria o valor total do contrato. Cláudia soma a folha, os impostos e a taxa administrativa da cooperativa.

Claudia: O contrato seria no valor de R$ 735 mil: R$ 500 mil é de folha. A gente paga a folha, o resto a gente paga de imposto e tem 7% da taxa administrativa.
E ela faz uma proposta ilegal: “Desse valor aqui, se você quiser, dá para a gente botar 10% em cima de cada contrato”.

É como se fosse uma "taxa de indicação". Em português claro, propina.
Claudia: 17%: 7% da cooperativa e 10% para a parte da pessoa que fizer a indicação, tipo você, entendeu? Vamos fazer uma parceria minha e sua. Os municípios que você indicar que a gente fechar, eu fico com a parte de 7% e você com a parte de 10%.

Um contrato assinado em abril entre a prefeitura de Araci e a Cooba é de R$ 4,25 milhões.
Visitamos os sete postos de saúde da família instalados nos povoados da zona rural de Araci. 
No povoado de João Vieira, segundo a cooperativa, tem um médico trabalhando 40 horas por semana. Mas a sala de atendimento está vazia, não há ninguém no consultório do médico - nem atendente, nem enfermeiro.

A cem quilômetros de Araci, reencontramos Cláudia Gomes, que não quis dar entrevista. O marido dela, Alessandro Queiroz, é o presidente da cooperativa.
Repórter: A cooperativa não paga comissão, nem propina nenhuma?
Alessandro: Não, de forma alguma, isso não existe.
Damiana teve uma crise de hipertensão quando estava no posto e, só por isso, acabou sendo atendida pelo médico. A boa notícia é que os exames dela estão ok.

Fraude na saúde

As cooperativas contratadas pelas prefeituras para fazer a gestão da saúde pública não podem ter fins lucrativos. É o que a lei diz, mas no Brasil real...
Mário Luciano Rocha é diretor da Coopersaúde, que atua em 15 municípios da Bahia.
O repórter diz a Luciano que dispõe de R$ 750 mil mensais para a gestão de um hospital de porte médio. O diretor da cooperativa diz que dá para gastar menos e embolsar a diferença.
Luciano: A gente sabe que dá para tocar isso com uns R$ 500 mil. Essa diferença você tem uma parte, dividiria com a gente uma parte da rentabilidade.

O repórter pergunta, então, sobre a prestação de contas com a Receita Federal.
Repórter: Como é que fica essa questão fiscal de vocês? Isso é problema de vocês, né?
Luciano: É nosso. Se incomode não que a gente tem mecanismo em relação a isso, empresas e tal.
E o executivo garante que a propina chega ao gestor público 48 horas depois de a cooperativa receber a verba prevista em contrato.
Luciano: Em 48 horas, 72 horas.
Repórter: E como seria esse repasse?
Luciano: Cash.

O Fantástico foi ao município de Candeias, onde o atendimento é administrado pela Coopersaúde. Conhecemos Jaqueline e Josenilton. A filha deles está doente. Nós marcamos o tempo da consulta da filha de Jaqueline e Josenilton: três minutos e meio.
Mãe: Demorou para chamar, para atender. E quando atendeu, foi rápido.
Repórter: Uma consulta que dura 3 minutos e meio de uma criança pode ser considerada completa?
Marambaia: De jeito nenhum.
A afirmação é de quem há 37 anos exerce a medicina como manda o código da profissão.
“O pediatra é um herói, porque ele consegue discernir através do choro e do muxoxo da criança o que muitos médicos não conseguem fazer”, destaca o especialista Otávio Marambaia.
No escritório de salvador, o diretor da Coopersaúde explica que os médicos da cooperativa ganham por consulta.
Luciano: Cada consulta, são R$ 25. Se ele vai atender 40 ou vai atender 80, é só multiplicar o número pelo valor da consulta.
Mas o presidente da Coopersaúde, Paulo Rocha, nega que pague aos médicos da cooperativa de acordo com o número de atendimentos.
Consultas a jato
Consultas a jato, em muito menos tempo do que seria necessário, são um problema que os repórteres do Fantástico encontraram também no estado de São Paulo.
Mãe e filha entram no consultório na região metropolitana de São Paulo e deixam a sala 1 minuto e 23 segundos depois.
Na ortopedia, é a mesma coisa. Uma paciente entra no consultório. No lado de fora, Leonilda espera de pé a vez de ser atendida. Ela se queixa de dor na mão direita, que está sem os movimentos normais. Apenas 2 minutos e 44 segundos depois, a porta se abre, fim da primeira consulta. Chega a vez de Leonilda.

O médico olha para a mão de Leonilda enquanto ela explica o problema que a levou até ali. Ele não toca na paciente. Apenas aponta com a caneta e diz alguma coisa. Foram 12 segundos. Durante apenas 12 segundos, o médico olhou para a paciente e só para a mão dela. Outros 52 segundos, ele usou escrevendo no receituário. Leonilda esperou em pé. Tempo total da consulta: 1 minuto e 4 segundos.

“Saber quem é você, de onde você veio, fatores que lhe pioram, melhoram, o que você já fez para tratar aquela doença. Eu só posso descobrir isso conversando com você. Se chega uma pessoa com queixa de uma articulação, um minuto convenhamos, é quase divino, é quase uma vara de condão. Isso não é medicina”, alerta Marambaia.

Cooperativas Clandestinas

As cooperativas podem ter em seus quadros apenas profissionais de saúde. Quando uma prefeitura precisa de profissionais de apoio ou de equipamentos, deve procurar as organizações sociais - as OSS - que também não podem ter fins lucrativos. 

O repórter Eduardo Faustini, que se passa por representante de prefeituras, recebe o presidente e a diretora de outra grande cooperativa da Bahia, a Coopermed.
Juciara: 60% do efetivo médico da secretaria do estado é nosso.
Repórter: Qual estado?
Juciara: Bahia.

Nesse encontro, o repórter diz que precisa terceirizar a gestão plena dos municípios que ele estaria representando. A proposta não poderia ser aceita por uma cooperativa. Para garantir o acordo, a Coopermed revela que pode fornecer uma OS. 
Juciara: Enquanto Coopermed, nós teremos disponibilizado pra você mão de obra médica. Quando você abriu aí a informação que você está procurando parceiros, inclusive se for na gestão com um todo, de unidade de saúde, nós temos uma irmã e nós fazemos parte, a Coopermed, que é a Fundação Casa do Médico.
No segundo encontro, apenas a executiva vai ao escritório e revela que trabalha na cooperativa e também na organização social.
Juciara: Eu sou Juciara, executiva de negócio deles.
Repórter: Da fundação?
Juciara: Da fundação.
Para conseguir o contrato, Juciara garante que o presidente da fundação não vai se opor ao pagamento de propina.
Juciara: Para a gente ter acesso a essas prefeituras tem alguém nos bastidores fazendo isso pela gente. E isso tem um preço, isso tem um custo.
Repórter: Mas é difícil para ele entender isso?
Juciara: Não. Eles são empresários da saúde. Eles são donos de hospitais, de clínicas. São empresários da saúde.

Entrevistado depois das gravações com câmera escondida feitas no escritório, o presidente da Coopermed negou que a cooperativa atue em parceria com uma organização social.“Não tivemos até o momento nenhuma vinculação com qualquer organização social”, disse.

Mostramos três cooperativas registradas no Conselho Regional de Medicina. Mas há também aquelas que não têm nem mesmo o registro exigido por lei. Um médico já trabalhou para cooperativas clandestinas.
Médico: Já recebi cheque de posto de gasolina.
Repórter: Não era cheque da cooperativa?
Médico: Não.

A Cooperlife não tem autorização para atuar.
Repórter: Vocês só atuam nos municípios que não exigem o registro do conselho?
Secetário: E são vários municípios que não exigem, entendeu?
Manoel Vitorino, na Bahia, é um dos 21 municípios onde a gestão da saúde é da Cooperlife.
Carmen é a zeladora do posto de saúde da cidade. Tem salário pago pela Cooperlife de R$ 435. Por lei, nenhum trabalhador pode ganhar menos de um salário-mínimo.
“Não tem outro emprego, se eu for ficar em casa eu vou viver de quê?”, ela diz.

A Pró-Saúde, do empresário Marco Polo, é outra cooperativa sem registro no Conselho de Medicina.
Repórter: Eu queria falar com o doutor Marco Polo.
Mulher no interfone: Não está. Estão viajando para Salvador.

O município de Tremedal, também na Bahia, tem contrato com a Pró-Saúde, ou melhor, tinha.
Repórter: Se eu lhe disser, prefeito, que essa associação não tem registro no conselho regional?
Prefeito Márcio Ferraz: Eu vou providenciar para ser apurado e ser punido. Se está errado, a primeira coisa a se fazer é cancelar o contrato.

No dia seguinte, o prefeito de Tremedal chamou a nossa reportagem e rescindiu o contrato.
Repórter: A prefeitura não vai mais atuar com essa cooperativa.
Prefeito: Não. A partir de hoje, não.

O Ministério da Saúde prevê a suspensão dos recursos quando a fraude fica comprovada.
“O papel do Ministério da Saúde no caso das gestões municipais é um papel de monitoramento, fiscalização e eventualmente de suspensão de recursos quando se constata desvios ou malversação de recursos. É inadmissível que os recursos que sejam transferidos pelo Ministério da Saúde possibilitem essas questões que vocês estão levantando nesta matéria”, alerta Fausto Pereira dos Santos.

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